BLOG ORLANDO TAMBOSI
No último podcast O Papo É, Rodrigo Constantino expressou um pensamento que me parece comum e errado: a questão da liberação dos jogos de azar opunha liberalismo e conservadorismo. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Em
política, discussões terminológicas muitas vezes não levam a lugar
nenhum. O esquerdista define o que é a “verdadeira esquerda” como sendo
ele próprio, e não a facção contrária à sua dentro da esquerda. O
liberal e o conservador, idem. A discussão pode durar para sempre porque
o que está em questão não é a verdade, mas o poder. No entanto, convém
dar um freio de arrumação quando a coisa passa do limite.
No
caso da esquerda, a coisa passa do limite quando a classe foi pras
cucuias. Tenho em mente os pseudoesquerdistas que passam a reivindicar o
direito (nunca negado) de dondocas de ébano vestirem Prada
ou saírem em capa de revista de moda, enquanto atacam o porteiro
evangélico e o famigerado “pobre de direita”. Historicamente, quem se
dizia de esquerda sempre levou em conta a questão da classe.
Historicamente, quem não tinha vergonha de mandar a classe para as
cucuias e focar só na raça não se dizia esquerdista, dizia-se nazista
mesmo.
Historicamente,
o liberalismo é identificado com a descentralização do poder. A
política da Inglaterra fez uma movimentação inovadora e seus princípios
foram documentados por John Locke, que merece ser considerado o primeiro
filósofo liberal e referência inevitável. No século XIX houve Mill, uma
figura ambígua, de trajetória intelectual conturbada, que terminou
socialista. Com base nisso, os anglófonos, sobretudo os dos Estados
Unidos, começaram o vandalismo semântico. E nós, que importamos todo
tipo de bobagem de lá, estamos vendo os pseudoliberais favoráveis à
distribuição estatal de modess e à discriminação estatal entre a verdade
e a mentira (pois criminalização de fake news não é outra coisa).
Os conservadores
Entre
os conservadores não creio haver um problema dessa magnitude. Mas creio
haver uma confusão que a polêmica dos jogos de azar trouxe à tona.
No último podcast O Papo É,
Rodrigo Constantino expressou um pensamento que me parece comum e
errado: a questão da liberação dos jogos de azar opunha liberalismo e
conservadorismo. Embora ele tenha caracterizado corretamente o
conservadorismo pelo respeito à ordem estabelecida, que não se confunde
com a imutabilidade de tal ordem, no passo seguinte opõe conservadorismo
a liberalismo na questão dos jogos de azar. O conservador deveria ser
inclinado à proibição de tais jogos, por causa dos argumentos levantados
pela bancada evangélica, e o liberal deveria ser favorável à liberação,
por uma questão de defesa das liberdades. Constantino se ladeou com os
liberais nessa questão e usou a prostituição como exemplo: é possível
achar reprovável sem querer proibir.
É um erro confundir a defesa das proibições moralistas com o conservadorismo. Por isso vou pegar o gancho da prostituição.
Numa famosa passagem do 'De ordine', Santo Agostinho defende a prostituição. (Ela pode ser lida aqui em inglês ou aqui em latim.)
A prostituta não é uma mulher baixa? Para Santo Agostinho, é. E o
carrasco, em si mesmo, não é um homem mau? Também. Mas cada qual ocupa o
seu lugar na ordem social. Se abolíssemos os homens impiedosos, à
sociedade faltariam carrascos e a ordem ficaria comprometida. Se todas
as mulheres pouco propensas à vida monogâmica fossem abolidas, a ordem
social – segundo a crença de Santo Agostinho – colapsaria. Existe o mal
no mundo e não dá para querer melhorar a obra e Deus abolindo-o. Isso é
um pensamento profundamente conservador. Considera que o homem é falho, e
que reformadores sociais não podem pretender moralizar todo mundo na
marra. Considera também que a ordem é complexa o suficiente para
acomodar o mal; e, por conseguinte, para que qualquer um possa mudar na
mão grande.
Que
diria Santo Agostinho das pretensões da bancada evangélica de moralizar
a família proibindo tudo? O que as evangélicas ao estilo Damares querem
é que a polícia impeça o marido ou o filho de beber demais, de se
drogar, de gastar tudo no jogo. Isso não é papel do Estado! É papel do
próprio homem, que tem que ser disciplinado; e é papel da mãe ou da
mulher auxiliar nisso. Ficar clamando para que o Estado cresça e resolva
seus problemas domésticos não dá. A seguir essa toada evangélica, as
mulheres casam com qualquer um que catem em clínica de reabilitação e o
Estado bota um policial na porta cuidando para que seja um bom marido.
Vamos
ao aspecto cultural. Em países protestantes de cultura puritana (e os
puritanos não eram exatamente conservadores…), a prostituição é
proibida. Lá nos Estados Unidos, portanto, faria sentido um conservador
perguntar: “Se nossa sociedade criou essa proibição, será uma boa ideia
tirá-la assim, na mão grande?” Esse é um raciocínio conservador, e não:
“Hum, proibir prostituição é careta, então vamos proibir prostituição.”
Se porventura reaparecer no Brasil a pauta da proibição da prostituição
(digo “reaparecer” porque as feministas tinham essa pauta na época do
PT), um conservador deverá pensar, do mesmo modo: “Se nossa sociedade
criou essa permissão, será uma boa ideia tirá-la assim, na mão grande?” A
proibição da prostituição cumpre alguma função na ordem dos Estados
Unidos; sua permissão cumpre alguma na do Brasil. Meter o bedelho do
nada não é prudente.
Assim,
qualquer argumento conservador contra a liberação dos cassinos deverá
levar em conta o histórico e a funcionalidade dessa proibição na ordem
social. Eu mesma não tenho opinião formada sobre o assunto.
Sem moicanos na Coreia do Norte
Caso
alguém ainda queira insistir que conservador e careta são a mesma
coisa, passo a um assunto capilar. As senhoras evangélicas da base de
Damares gostariam se os seus filhos resolvessem usar um moicano verde?
Aposto que não. Se houvesse um surto de moicano verde, o que essas
senhoras iriam fazer?
Na
Coreia do Norte, tal surto é impossível. Existe uma lista de cortes de
cabelo permitidos. Todos mui caretas, naturalmente, e nenhum súdito pode
usar aquele cabelinho de Kim Jong-Un.
Alguém aqui vai dizer que a Coreia do Norte é um país conservador? É só um país totalitário e careta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário