Combater expressões supostamente "racistas, como se faz no Brasil, é de uma ignorância atroz, caracterizando uma verdadeira eugenia verbal. Antônio Risério para o caderno Aliás, do Estadão:
A
essa altura do campeonato, com a polícia da língua em ação repressora
incansável, já nem faço ideia de como hoje, nas Minas Gerais, as pessoas
estão chamando o Aleijadinho, que, por sinal, era um mulato (ou negro?)
escravista.
E
agora, que decretaram que a expressão latina “doméstica” se refere a
escravas negras e, portanto, seria afrontosa, logo teremos campanhas
contra as placas racistas de “embarque doméstico” que vemos em nossos
aeroportos.
Também
não sei como racialistas neonegros reagiriam à informação de que a
palavra preto começou a ser acionada, com referência a pessoas de pele
escura, no Portugal do século 15. É um conceito linguístico do
colonizador. Vamos deixar de usá-lo?
O
fato é que o combate a expressões supostamente “racistas”, que ganha
corpo por aqui, é de uma ignorância atroz. Ponto de emergência do
fascismo legiferante semiletrado que ameaça se impor (graças à
ignorância geral sobre a nossa história linguística) – e que também
chega a ser racista.
Como
no caso do combate à expressão “macumba”. A palavra é de origem banta,
nos veio do kikongo e do kimbundo, originalmente “makuba”, com o sentido
de “reza” ou “invocação”. É racismo querer banir palavras africanas da
língua que falamos diariamente.
Além
disso, surgiu a “língua” do x-@-e ou “linguagem inclusiva”, que não
inclui ninguém e exclui muitos. Pessoas com dislexia, por exemplo.
Pessoas semianalfabetas ou em processo de alfabetização, também.
A
“língua” do x-@-e, por sinal, já começa querendo nos obrigar a falar
não de língua portuguesa, mas de língux portuguesx ou língue portuguese.
No caminho da transformação do português numa pedreira consonantal
impronunciável. E haja disparates.
A
começar por uma trapalhada elementar: gênero gramatical nunca foi
gênero biológico. Basta pensar na dupla “cesto” e “cesta”. Alguém já viu
o sexo de um cesto ou de uma cesta? O que uma pobre cesta tem a ver com
“identidade de gênero”? Existem cestas “trans”?
É
evidente que a diferença entre um barco e uma barca é gramatical, não
genital. E a vogal temática, em português, não define gênero. Gênero é
definido pelo artigo que acompanha a palavra. Sofá termina em “a” e não é
feminino.
Boa
parte dos nossos adjetivos pode ser masculina ou feminina,
independentemente da letra final. E terminar uma palavra com “e” não faz
com que ela seja neutra. A alface que o diga.
A
linguista Concepción Company, do Instituto de Investigações Filológicas
da Universidade Nacional Autônoma do México, lembra que os que atribuem
marcações de gênero à dominação patriarcal branca no Ocidente, deveriam
saber que a língua árabe não tem marcador de gênero e, no entanto, o
patriarcado muçulmano é um fato.
No
Afeganistão, as línguas oficiais, o pastum e o farsi ou persa, não têm
distinção morfológica de gênero. Todos são obrigados a dizer “todes”. Há
milênios. Deve ser por isso que a igualdade de gênero reina entre os
talibãs.
O
grave é que, não raro, ao colocar um determinado vocábulo no index
inquisitorial, os praticantes do eugenismo verbal podem estar
simplesmente apagando ou destruindo a experiência sociocultural que se
acumulou ali naquela palavra. O projeto totalitário do identitarismo é
amplo e sufocante. Trata-se de colonizar a linguagem e o discurso. Mais
um capítulo do imperialismo cultural norte-americano em nossa época. O
portinglês, o franglais e o italinglese que o digam.
Os
identitários vivem se autoproclamando adversários irredutíveis do
imperialismo e do colonialismo, mas alguém acredita? Nada mais mimético
do que esses militantes. Eles são totalmente colonizados pelo trio
norte-americano esquerda-academia-mídia.
Os
Estados Unidos tomaram conta da internet, assentaram os termos da nova
doxa planetária e fazem as réplicas locais falar a sua língua, repetir
os “ideologemas” que consagrou e fazer o discurso determinado pela
matriz. Não faz tempo, encontrei, no jornal El País, um artigo de
Antonio Caño, “Un Proyecto Fallido”, onde se lia: “Que resta do projeto
com que se iniciou nossa democracia? Apenas nada nos une. Nem sequer
nosso idioma, que parecia até há pouco um valor intangível e neutro,
está hoje fora do conflito ideológico... Não tardará o dia em que
proponham retirar o nome do Instituto Cervantes para buscar uma figura
supostamente mais inclusiva, alguém que represente melhor a todos os
idiomas da Espanha, que a cada dia são mais”.
O
quadro traçado nos faz pensar em nós mesmos. Espanta, aliás, que os
movimentos negros não tenham ainda cancelado Machado de Assis, com seu
elogio da beleza branca, seu desdém pela “cultura negra” e seus ataques à
capoeira.
Mas,
enfim, estamos assistindo à emergência da crença numa nova magia
nominalista. Ou ingressando no reino da onipotência do palavreado. E o
combate à cultura estabelecida invadiu o domínio idiomático.
As
pessoas se dispuseram a agir sobre a língua para mudar o mundo –
quando, ao contrário, deveriam se dispor a agir sobre o mundo para mudar
a língua. Afinal, como sempre digo, as cores existem não porque
tenhamos palavras para elas. É o contrário. Existe um léxico das cores
porque, graças ao equipamento ótico luxuoso com que fomos premiados, o
mundo humano é colorido.
Roland
Barthes observou certa vez que os revolucionários de 1789 falaram em
desmantelar tudo, menos a língua francesa. Nenhuma comunidade humana
existe sem a sua língua. Ela é a mais fundamental de todas as
instituições sociais. E línguas são cosmovisões milenares.
A
língua possibilita, organiza e estrutura o nosso entendimento do mundo.
Ou, por outra, o mundo é visto nos termos de nossas estruturas verbais.
Sempre que toco nessas teclas, me repetem o truísmo: tudo muda, as
línguas também! Claro que as línguas mudam. Mas uma coisa é a mudança
processual ocorrendo, a partir da fala, dentro da lógica da própria
língua – a que vai de “vossa mercê” a “você”, por exemplo.
Outra
coisa é a tentativa instantânea de imposição ideológica, artificial,
“desde fora”, de uma partícula ou micropartícula verbal ou de uma
justaposição de partículas – como em “amigxs”.
Coisas
que nem sequer nascem na fala, que é a prática da língua, mas na
escrita político-acadêmica, brotando de fórmulas discursivas geradas em
tubos de ensaio, no laboratório dos novos ideólogos da língua.
Maiakovski escreveu: “o povo, o inventa-línguas” – e não “o ativista, o inventa-línguas”. A diferença está toda aí.
Como
bem viu o filósofo Adrien Louis, em artigo recente no Figaro, o que
estamos no dever de contestar é a tentativa absurda de querer impor uma
determinada instrumentalização ideológica da língua. Esta é a questão
central.
O
argumento de Adrien se organiza em torno desse problema. Diz ele que se
o caráter desgracioso – le caractere disgracieux – da escrita inclusiva
é um fato evidente, isto apenas traduz a “ambição original” do projeto.
A
disgrâce esthétique “reflete bem fielmente a obsessão moral que aquela
escrita quer introduzir em nosso uso da língua e, mais fundamentalmente,
em nosso pensamento”.
Ou
ainda: a disgrâce esthétique traduz uma “intenção exorbitante”, no
sentido mesmo de arbitrariedade que ultrapassa a medida justa das
coisas, qual seja a de “colocar deliberadamente a língua a serviço de
uma certa moral” – ou de “introduzir a pureza moral na textura mais
íntima de nosso pensamento”.
E
tal “intenção exorbitante” não é dissimulada. Encontra-se sempre
explícita na pregação dos militantes desse projeto de eugenismo verbal. A
partir do seguinte raciocínio: o dever primeiro de nossa civilização
não é liberar os espíritos, mas simplesmente prendê-los ao porto da “boa
ideologia”.
Adrien
considera corretamente que a luta contra as discriminações e pela
vitória da igualdade é a mais legítima de todas as lutas. Mas, em nome
disso, não devemos sacrificar a espécie de liberdade que permite que o
pensamento respire e floresça.
Vale
dizer – e este é realmente o ponto essencial –, o que os militantes da
linguagem ou escrita inclusiva querem é “o sacrifício de uma palavra
livre, em proveito de um pensamento constantemente vigiado”.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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