É espantoso que, hoje, uma parte significativa dos eleitores brasileiros não tenha memória do filme antigo protagonizado pelo PT e o seu chefe. Fábio Leite para a Crusoé:
O
ano eleitoral mal começou e o PT já reativou sua máquina de reescrever a
história. Depois de disseminar a falsa narrativa da perseguição
política para se esquivar das inúmeras – e robustas – denúncias de
corrupção envolvendo seus principais quadros, o partido comandado por Luiz Inácio Lula da Silva
dedica-se agora à estratégica tarefa de apagar da memória dos
brasileiros os erros que ajudaram a afundar a economia nos últimos anos
da era petista. A artimanha para tentar voltar ao poder ganhou forma
nesta semana, com a publicação de um artigo que defende a velha cartilha
do lulismo para “consertar” o país. O texto provocou enorme
repercussão, não apenas pelo seu conteúdo desonesto, que omite o
catastrófico apagar das luzes do governo Dilma Rousseff, mas também pela
figura que Lula escolheu para assiná-lo: Guido Mantega.
Mais
longevo ministro da Fazenda da era petista (comandou a pasta de 2006 a
2014), Mantega ressurgiu na cena política como porta-voz do petismo em
uma série de artigos sobre economia que o jornal Folha de S. Paulo
solicitou aos principais presidenciáveis. O texto ataca a “herança
maldita” que será deixada pelos “governos Temer e Bolsonaro” e defende
um modelo intervencionista, controlando os juros e estimulando
“políticas industriais”. Nenhuma linha foi dedicada a explicar a pior
recessão da história, iniciada ainda em 2014 e marcada pela grave
retração do PIB sob Dilma Rousseff. Adversários de Lula na corrida ao
Planalto, como Sergio Moro
e Ciro Gomes, criticaram duramente o artigo e até lulistas de
carteirinha caçoaram da peça de Mantega. “Oxalá seja apenas
mal-assombração!”, escreveu o deputado Orlando Silva, do PCdoB, que
também foi ministro nos governos de Lula e Dilma.
Lideranças
petistas passaram os últimos dias explicando a opção por Mantega como
porta-voz econômico da candidatura de Lula. Venderam como uma espécie de
alento a tese de que, apesar de encarnar a ideologia desenvolvimentista
do petismo, o ex-ministro foi escolhido porque já se sabe que ele não
voltará à Esplanada dos Ministérios em um eventual novo governo do PT.
“Qualquer outro nome geraria especulação de que poderia ser o ministro
da Fazenda do Lula”, diz um dirigente petista. O fato é que a síntese do
plano econômico de Lula, que visa a acabar com o teto de gastos
públicos e revogar a reforma trabalhista, está presente no artigo de
Mantega e é fruto de conversas semanais que o ex-ministro manteve
durante a pandemia com os economistas Luiz Gonzaga Belluzzo e Delfim
Netto, dois outros conselheiros de Lula na área – às sextas-feiras, eles
costumavam se falar por videoconferência na hora do almoço, para
conversar sobre o cenário econômico e alinhavar ideias a serem
oferecidas ao chefe petista.
Aliados
afirmam que o ex-presidente deve buscar um perfil mais parecido com o
de Antonio Palocci, que foi ministro da Fazenda em seu primeiro mandato.
Um nome ligado ao PT, claro, mas palatável ao mercado. Palocci virou
desafeto dos petistas depois que confessou seus crimes e delatou antigos companheiros
de partido em um acordo de colaboração feito com a Polícia Federal.
Entre os delatados está o próprio Mantega, seu sucessor no ministério,
acusado de antecipar decisões do Banco Central para o banqueiro André
Esteves, dono do BTG. Os relatos de Palocci e de outros delatores
graúdos da Lava Jato, como Marcelo Odebrecht e Eike Batista, ajudam a
explicar por que Guido Mantega ainda goza de tanto prestígio nas hostes
lulistas.
Ao
longo dos nove anos em que esteve à frente da Fazenda, Mantega foi o
mais eficiente tesoureiro de campanha do PT. Os empresários acusaram o
ex-ministro de cobrar repasses ilícitos ao partido como contrapartida
para atender seus pedidos dentro do governo. O caso mais notório envolve
o pagamento de 50 milhões de reais da Braskem, do grupo Odebrecht, à
campanha de Dilma em 2010, referente à “compra” da medida provisória
conhecida como Refis da crise, que abatia dívidas tributárias da
empresa. O acerto rendeu a Mantega o apelido “Pós-Itália” na planilha do
setor de propinas da empreiteira baiana. A denúncia apresentada à Justiça pela força-tarefa de Curitiba foi rejeitada
e as provas foram anuladas depois que o Supremo Tribunal Federal
determinou o envio da ação do Paraná para Brasília. Mantega chegou a ser
detido por algumas horas pela PF, em 2016, e conseguiu se livrar da
tornozeleira eletrônica graças ao STF.
O
ex-ministro foi um dos assuntos políticos mais candentes da semana, mas
não é só ele quem dá ares de filme antigo à pré-candidatura de Lula.
Outros importantes personagens da era petista estão diretamente
envolvidos na campanha presidencial. Três vezes ministro de Dilma entre
2011 e 2015, Aloizio Mercadante, por exemplo, é o responsável pela
formulação do que será apresentado em alguns meses como o plano de
governo lulista. Presidente da Fundação Perseu Abramo, bancada com o
fundo partidário, Mercadante é quem organiza as reuniões de onde saem as
teses que depois a militância passa a difundir nas redes. Foi na
fundação que ele e Lula se reuniram com Belluzzo antes de turnê pela
Europa, em novembro, onde o chefe petista se encontrou com líderes da
centro-esquerda e com o presidente francês, Emmanuel Macron.
Mercadante
terá neste ano tanta projeção quanto Gleisi Hoffmann, a presidente
nacional do PT, que tem acompanhado Lula em todas as agendas eleitorais.
Sem autonomia para negociar em nome do partido, a deputada, também
beneficiada por decisões da Segunda Turma do STF contra a Lava Jato,
atua como emissária de Lula nos encontros dos quais o chefe petista não
consegue participar. Nos últimos meses, Gleisi passou a seguir também as
diretrizes traçadas por outro ex-ministro que Lula trouxe para perto de
si, de olho na disputa pelo Planalto: Franklin Martins, que foi chefe
da Secretaria de Comunicação no segundo mandato do petista, entre 2007 e
2010. Franklin assumiu a coordenação das redes sociais de Lula e deve
comandar a estratégia de comunicação da campanha. Aliados atribuem à
chegada do ex-ministro à equipe as declarações de Lula no ano passado em
defesa da regulação da mídia, um desejo antigo do petismo raiz.
Franklin Martins foi o responsável por alimentar uma série de blogs
petistas, depois do mensalão, especializados em tentar manchar a
reputação de adversários políticos e jornalistas independentes.
O
“acordão” do establishment político para sepultar a Lava Jato deu ao PT
não apenas a condição de lançar Lula na corrida presidencial, mas
também munição para que outros quadros históricos e igualmente enrolados
com a Justiça voltassem a circular com desenvoltura nos bastidores. O
caso mais emblemático é o do ex-ministro José Dirceu. Como mostrou Crusoé em
dezembro, o chefe da Casa Civil no primeiro governo Lula, condenado no
mensalão e no petrolão, tem rodado o país para conversar com
governadores, parlamentares e dirigentes partidários – a atuação é
classificada por um interlocutor dele como “prospecção” eleitoral.
Dirceu tem sido bastante elogiado dentro do partido, que para evitar
danos de imagem o mantém estrategicamente afastado do círculo mais
próximo de Lula.
Outro
rosto conhecido que ganhou espaço nas hostes petistas nos últimos
tempos é o do ex-deputado José Genoino, que também já presidiu o PT,
como Dirceu, e foi igualmente condenado no processo do mensalão, em
2012. Hoje, Genoino vocaliza a ala mais radical do partido. Ele encampou
um abaixo-assinado contra a ideia de lançar o ex-governador paulista
Geraldo Alckmin como vice na chapa de Lula, defendida por Fernando
Haddad. É no grupo de Genoino que flui o petismo mais ideológico,
defensor das ditaduras de esquerda da América Latina, como a da
Venezuela, e que responsabiliza a “hegemonia neoliberal” pelas agruras
do país – um discurso que, vez ou outra, e a depender de quem está a
ouvi-lo, o próprio Lula também adota. Embora seja muitas vezes engolida
pelo pragmatismo lulista, essa ala exerce influência e forte pressão
interna nas decisões partidárias. Foi assim, por exemplo, na
constrangedora nota que celebrou em novembro passado a “vitória” do
ditador Daniel Ortega nas eleições na Nicarágua e a polêmica ida de
Gleisi à posse do ditador venezuelano Nicolás Maduro, em 2019.
A
face mais moderada do grupo é a do deputado Rui Falcão, que antecedeu
Gleisi no comando do PT e coordenou a campanha de Dilma em 2014, ápice
do esquema de caixa 2 revelado pela Lava Jato – Marcelo Odebrecht, por
exemplo, admitiu ter repassado 150 milhões de reais por fora para a
reeleição da petista naquele ano. O parlamentar também é refratário à
aliança com o ex-tucano Alckmin, mas nem por isso perdeu espaço no
núcleo duro lulista. O ex-presidente já garantiu a participação de
Falcão no grupo que coordenará sua campanha. Caberá a ele conter a ira
dos mais fanáticos contra o pragmatismo eleitoral e a grita a favor de
bandeiras antidemocráticas da esquerda xiita, que certamente serão
exploradas pelos adversários.
Até
o ex-tesoureiro Delúbio Soares, condenado ao lado de Genoino e Dirceu
no mensalão, começou a dar pitacos nos grupos de WhatsApp da militância
petista, cavando espaço. A mulher de Delúbio, Mônica Valente, ainda
integra a Executiva Nacional do partido, na qual já comandou o
departamento de relações internacionais, e é a principal representante
da legenda no Foro de São Paulo, que reúne a esquerda latino-americana e
costuma defender gente como os narcoguerrilheiros colombianos das Farc –
recentemente, a agremiação se manifestou a favor da prisão de políticos
opositores por Ortega na Nicarágua. Por ora, nas questões diplomáticas,
Lula tem seguido mais os conselhos do ex-chanceler Celso Amorim,
ex-ministro das Relações Exteriores e da Defesa. Integram ainda a tropa
os ex-ministros Fernando Haddad e Jacques Wagner, que só não se
dedicarão mais à campanha do chefe petista porque precisarão gastar sola
de sapato para tentar vencer as eleições ao governo paulista e baiano,
respectivamente.
Enquanto
na base petista já tem gente sonhando em voltar a ocupar um cargo em
Brasília, o discurso das principais lideranças do partido é de cautela,
para conter o clima de “já ganhou” que começou a se espraiar pela
militância diante da vantagem que Lula tem sobre os demais candidatos
nas pesquisas. Os mais experientes lembram da campanha de 1994, quando
ele tinha 40% das intenções de voto em maio, cinco meses antes do
pleito, e perdeu para o tucano Fernando Henrique Cardoso no primeiro
turno. “Naquela eleição, teve um jornal que publicou uma lista completa
de quem seriam os ministros do Lula e deu no que deu”, recorda um
dirigente.
É
espantoso que, hoje, uma parte significativa dos eleitores brasileiros
não tenha memória do filme antigo protagonizado pelo PT e o seu chefe.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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