A questão que se põe é se a artista Grada Kilomba devia necessariamente ter sido escolhida. Só por ser negra, como se depreende das “manifestações” e “indignações” dos anti-racistas de plantão? João Pedro Marques para o Observador:
Não
ignoro que há racistas no nosso país e que, pontualmente, esse seu
racismo pode levar a coisas sérias e graves, incluindo à morte de
pessoas. Mas Portugal não é, felizmente — e falo em termos gerais —, um
país racista, não é o Mississipi em chamas da Europa, e, as mais das
vezes, aquilo que passa por racismo são coisas da vivência de todos nós,
que, em certos casos, envolvem uma ou mais pessoas negras — uma
altercação, uma crítica, uma troca de insultos, etc. Sucede, porém, que
há em Portugal muitos anti-racistas de plantão, injectados e adubados
por via universitária ou partidária. Essas pessoas estão sempre alerta,
sempre à espreita, sempre à cata do menor episódio que se preste a ser
aproveitado para gritar aos sete ventos que Portugal é um país racista.
Os anti-racistas de plantão são caixas de ressonância uns dos outros e
são especialistas em fazer, como diria Schakespeare, much ado about
nothing. Em consequência disso, a coisa ínfima ganha volume, torna-se
mais encorpada, e forja-se uma situação de escândalo, de indignação
pública, que desemboca invariavelmente na imprensa e em falsas certidões
de que existiria entre nós um racismo poderoso, actuante, omnipresente,
opressivo, sistémico, estrutural.
O
último episódio desse tipo de que tive conhecimento envolve a artista
portuguesa de origem africana Grada Kilomba que, ao que parece, não se
conforma (ou alguém por ela) com o facto de não ter sido escolhida para
representar Portugal na próxima Bienal de Veneza. Esse facto ganhou
imediata retumbância nas redes sociais, com muitos anti-racistas de
plantão a escreverem textos indignados e acusatórios. Em paralelo, o
facto chegou aos jornais, deu origem a artigos do opinião, à inevitável e recentíssima “carta aberta em defesa de Grada Kilomba” e, como estes anti-racistas de plantão têm um lobby com muitos braços, repercutiu mesmo no estrangeiro — tornando, por isso, o clamor mais “importante” ou mais “credível”.
Aquilo
que se tem apontado a Nuno Crespo, o membro do júri que avaliou menos
favoravelmente o projecto de Grada Kilomba, é o facto de ter tido uma
opinião diferente da dos outros três membros do júri, e de, em
conformidade, ter atribuído ao projecto em causa notas apenas sofríveis
(o que fez baixar a média geral da candidata). Em muitos dos textos que
então se escreveram, acusou-se, de forma velada ou expressa, Nuno Crespo
de ser alguém que teria agido de má-fé, motivado por racismo e, aos
olhos de alguns, também por misoginia e lusotropicalismo. Vale a pena
observar mais de perto o texto acusatório de um desses anti-racistas de
plantão porque ele é muito elucidativo acerca dos vícios de um certo
modo de pensar. O anti-racista em causa é o economista Jorge Fonseca de Almeida,
pessoa que acha que no nosso país o ensino da disciplina de História é,
e cito-o, “propaganda colonial”. Fonseca de Almeida apresenta o assunto
em causa da seguinte forma: “Grada Kilomba é uma das mais conceituadas e
internacionais escritoras e artistas plásticas portuguesas, professora
na prestigiada Universidade de Humboldt em Berlim. Pois foi afastada da
representação nacional sem razão aparente que não seja a denuncia do
passado colonial que a sua obra faz. Como aliás o parecer de um dos
jurados candidamente o afirma. Afasta-se assim uma das mais importantes
artistas portuguesas Negras da representação nacional num dos certames
internacionais mais importantes. Lembra a triste decisão de júri, de
igual dimensão moral e intelectual, que afastou Saramago por falta de
qualidade.” Para o economista Fonseca de Almeida, e cito-o novamente,
este “inacreditável caso de perseguição à artista Grada Kilomba” é mais
um dos casos de racismo em que o nosso país seria fértil.
Não
conheço Nuno Crespo, o jurado a que Almeida se refere, e de Grada
Kilomba conheço apenas alguns momentos da sua carreira artística e a sua
recente exposição em Belém — sobre a qual, aliás, em devido tempo
escrevi. Mas nada me move contra Grada Kilomba e desejo-lhe os maiores
sucessos, desde que merecidos. E esse é o ponto que me parece importante
sublinhar. Não me vou pronunciar sobre méritos ou deméritos artísticos e
conceptuais deste projecto específico de Grada Kilomba (nem do de Pedro
Neves Marques, a pessoa que foi escolhida para representar Portugal na
Bienal de Arte de Veneza) porque não estou em posição de o fazer. Mas o
que para mim é óbvio é que as pessoas negras podem perder concursos, tal
como as de qualquer outra cor de pele, sem que isso seja
necessariamente suspeito, conspirativo, persecutório ou racista.
Não,
Jorge Fonseca de Almeida, Grada Kilomba não foi “afastada”, como
tendenciosamente escreveu. Simplesmente não foi a pessoa escolhida. Não
ganhou. Haverá coisa mais natural do que essa? Qualquer pessoa que se
tenha sujeitado a concursos com júri sabe que pode ganhar ou não. Sei-o
por experiência própria e nunca me passou pela cabeça reclamar por não
ter sido escolhido. O que me parece importante assegurar é que ninguém
tenha de ganhar pelo nascimento, pela reputação que já adquiriu ou pelo
grupo de pressão que tem atrás de si. Porque a questão que aqui se põe é
a seguinte: porque é que a artista Grada Kilomba devia necessariamente
ter sido escolhida? Por ser negra (como se depreende das “manifestações”
e “indignações” dos anti-racistas de plantão)? Por ser, alegadamente,
“uma das mais conceituadas e internacionais escritoras e artistas
plásticas portuguesas, professora na prestigiada Universidade de
Humboldt em Berlim”, como Jorge Fonseca de Almeida escreveu numa
evidente overdose panegírica?
Em
vez de espalharem insultos e acusações graves a torto e a direito, em
vez de verem constantemente tenebrosas intenções no comportamento dos
que de algum modo os contrariam — Nuno Crespo, neste caso —, os
anti-racistas de plantão deviam tentar demonstrar à opinião pública os
superiores méritos do projecto de Grada Kilomba quando comparados com os
do projecto que efectivamente ganhou. Reclamar por não ter sido ela a
seleccionada é pobre e pueril. Mas não há dúvida que ajuda a construir a
tal imagem de Portugal como país racista e talvez seja esse o principal
objectivo de tanta e tão persistente gritaria.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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