Por que razão é perversa a desvalorização das tradições e valores europeus? Porque eles garantiram direitos e liberdades, em contexto de sociedade aberta, que não sucederam em qualquer outra tradição, escreve Patrícia Fernandes no Observador:
“Pus-me
a pensar. Aqui havia um erro, um desvio qualquer. Os nossos intuitos
eram bons; as nossas doutrinas pareciam certas; seriam errados os nossos
métodos? Com certeza que deveriam ser.”
Fernando Pessoa, O banqueiro anarquista
Publicado em janeiro de 2015, Submissão
de Michel Houellebecq é um livro a que vale a pena regressar. Não só
pelo estilo literário e o uso sublime da língua e da ironia do escritor
francês, mas também porque Houellebecq se revela um leitor perspicaz dos
nossos tempos, confrontando-nos com o mais fundamental de todos os
dilemas: o da nossa identidade, pessoal e coletiva. O argumento do livro
é conhecido: nas eleições presidenciais francesas de 2022, o
crescimento da extrema-direita origina o habitual cordão sanitário
republicano, que leva à presidência o líder da Fraternidade Muçulmana. A
consequência é a transformação da república francesa em república
islâmica, perante a progressiva submissão dos franceses.
O
tópico da presença muçulmana na Europa é frequentemente revisitado e
tem sido radicalizado em torno da ideia de Grand Remplacement (expressão
popularizada com a obra de Renaud Camus, de 2011, e que tem sido
aproveitada na campanha presidencial por Éric Zemmour). Mas Houellebecq
dispõe a questão de modo mais desafiante: o fim da cultura europeia
resultaria da própria ratoeira democrática, que coloca a legitimidade do
poder na decisão da maioria, tornando possível que a vitória
democrática caiba a um partido que representa uma cultura alternativa
aos valores ocidentais. Afinal, e como refere Houellebecq, a
transcendência é uma vantagem seletiva: as comunidades que mantêm uma
narrativa religiosa reproduzem-se mais, aumentando as suas hipóteses de
sobrevivência.
É
interessante notar como, nestas eleições ficcionadas, os primeiros a
fugir de França são os judeus, que migram em larga escala para Israel.
Sentem-se ameaçados pelas possibilidades de vitória, seja ela da Frente
Nacional ou da Fraternidade Muçulmana, e a história já lhes deu
demasiadas oportunidades de aprendizagem. Israel representa a sua
salvação, não só física como cultural, constituindo uma espécie de
Heimat a que podem regressar.
Submissão
é um exercício literário e não podemos, nem devemos, analisar o livro
como se se tratasse de uma obra de teoria ou ciência política. Ainda
assim, permite que nos confrontemos com o que significa a identidade
europeia, os seus valores e as suas conquistas, considerando a nossa
história e as nossas tradições. Em linha com o conservadorismo
reacionário francês, Houellebecq apresenta-se como um crítico da
modernidade, e em Submissão é particularmente evidente a desaprovação do
individualismo, da destruição do espírito comunitário e da fragilização
das tradições familiares e religiosas – e a anunciação da decadência da
civilização europeia no caminho designado como progresso. A esta luz, o
término desse caminho significa a estranha morte da Europa, para usar a formulação de Douglas Murray.
Não precisamos então de subscrever a teoria da grande substituição para reconhecermos a importância do tema e o modo como a questão identitária é hoje central para a nossa reflexão sobre a Europa e o seu futuro (em que Europa e União Europeia se confundem). Essa reflexão deve ser empreendida considerando dois eixos principais: a política de imigração e o multiculturalismo – isto é: o tipo de políticas públicas que queremos estabelecer para quem quer entrar na Europa e o tipo de políticas públicas que queremos adotar para quem ficar dentro das nossas fronteiras.
O
tema ganhou maior produção académica após a crise dos refugiados de
2015, mas o problema identitário já estava presente na Europa há pelo
menos duas décadas. Os sintomas foram-se fazendo sentir, designadamente
com o crescimento de partidos de cariz identitário, geralmente
eurocéticos – mas o mais importante acontecimento talvez tenha sido o
Brexit. Embora o resultado do referendo tenha recebido o contributo de
muitos fatores, a questão da imigração ocupou um lugar central, tornando
evidente um problema que as elites políticas europeias preferiram
ignorar. Na verdade, as comunidades não podem ser pressionadas até ao
ponto de sentirem a sua sobrevivência perigar – a partir desse momento,
começam a resistir àquilo que identificam como uma ameaça.
Ivan Krastev, cientista político búlgaro, nunca fugiu a esta análise. Em After Europe,
mostra-nos o problema da perspetiva da Europa do leste: “Quando vemos
na televisão cenas de idosos locais a protestar contra o estabelecimento
de refugiados nas suas vilas despovoadas, onde nenhuma criança nasce há
décadas, o nosso coração sente pelos dois lados – pelos refugiados, mas
também pelas pessoas velhas e sozinhas que têm visto o seu mundo
desaparecer. Vai sobrar alguém para ler poesia búlgara daqui a cem
anos?”
Atendendo
ao que tem acontecido nas últimas décadas, devemos questionar o sucesso
das políticas europeias de imigração – mas também das políticas de
multiculturalismo, que recusam o assimilacionismo e visam a integração
da diferença cultural através do espírito europeu de inclusão.
Recorramos à distinção efetuada por David L. Miller
entre multiculturalismo enquanto política pública e multiculturalismo
enquanto ideologia. Embora as políticas multiculturalistas visem
objetivos nobres e que resultam da própria cultura europeia, a dimensão
ideológica tem um efeito perverso: ela produz uma desvalorização do
legado nacional. Como diz Miller, “uma cultura nacional pressupõe
inevitavelmente ter orgulho no que a nação conseguiu historicamente,
quer se trate de desenvolvimentos na arte e na ciência, da construção de
um império ou da defesa de uma fronteira anterior”. Devemos
naturalmente ser críticos da nossa história, mas não podemos repudiar os
nossos valores e desvalorizar as nossas conquistas para acomodar as
identidades culturais migrantes. Em particular, “não pode ser exigido à
maioria que pare de valorizar aqueles elementos que, até aos dias de
hoje, a definiram como pertencendo a um povo particular.” E entre esses
elementos está a religião.
Por
que razão é perversa a desvalorização contínua das tradições e dos
valores europeus? A resposta prende-se com a herança civilizacional
europeia: os valores europeus garantiram um conjunto de direitos e
liberdades emancipatórias, em contexto de sociedade aberta, que não
aconteceram em qualquer outra tradição. Se a inclusão significa
desvalorizar estas conquistas e estes valores, então tem de haver algo
de errado com essa inclusão, como fica demonstrado pela polémica causada
pela recente campanha do Conselho da Europa.
Mas também a proposta da comissária da UE para a igualdade
nos deve alarmar: as mudanças de linguagem são apresentadas como
visando a inclusão da diversidade, mas acabam por se traduzir no
apagamento das nossas tradições e do nosso passado, como o Papa Francisco
chamou a atenção. Tomar este caminho de desvalorização significa o
suicídio da civilização europeia – e essa morte é particularmente
punitiva para os grupos que beneficiaram de uma emancipação de que não
gozam nas outras culturas.
É
o caso, claro, das mulheres. E o problema para as mulheres é que, ao
contrário da comunidade judaica em Submissão, não há um Israel para nós.
Não há uma Heimat que nos garanta o reduto de liberdade feminina que
temos hoje no espaço de tradição europeia – onde podemos, livremente,
desenvolver o projeto de vida que desejamos. Apesar de todos os seus
problemas, a civilização europeia representa uma história de que nos
devemos orgulhar e que nos estimula a resistir aos ímpetos iliberais que
nos ameaçam. Celebrar as nossas tradições, como o Natal, pode ser essa
forma de resistência. Votos de um feliz Natal!
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário