Ao contrário do que os superficiais pensam, o que lhes falta não é uma virtude específica, mas um vício. Luiz Felipe Pondé via FSP:
Sim, o otimismo é a virtude cívica máxima de nossa época. Todos amam a todos e todos desejam um mundo melhor.
Uma nova forma de náusea, que não a do Sartre
(1905-1980), acomete a consciência, aquela náusea mesma que para as
almas superficiais se confunde com o pessimismo ou quaisquer outros
sentimentos não "progressistas". Para mim, a definição máxima de
"progressista" hoje é a função corporativa conhecida como "CHO", chief
happiness officer —"chefe do departamento de felicidade"— da empresa.
Existem alguns pecados no otimismo.
Um primeiro deles é sua irresistível vocação à superficialidade no
trato com a realidade, com a decorrente tendência à mentira como método e
ao engodo como manifesto "disruptivo".
Outro
pecado do otimismo é ter sido abraçado pelos movimentos sociais dos
séculos 19 e 20. Como dizia Tocqueville (1805-1859) no seu "Souvenirs"
(ed. Gallimard, 1999), escrito ao longo dos dias da Revolução de 1848 em
Paris, o mal do século 19 era a inquietação dos espíritos e a crença de
que revoluções sociais
fariam do mundo o que esses espíritos desejavam. As revoluções se
foram, mas o marketing capturou tanto a inquietação dos espíritos quanto
as suas expectativas e fez delas uma indústria dos espíritos inquietos
em aceleração infinita.
Para o mercado, a censura à liberdade de expressão
não é definida como proibição da emissão de conteúdos, mas sim como a
obrigação de que os conteúdos remem a favor da maré do otimismo que faz
de todos uns idiotas sorridentes.
Portanto,
uma nova forma de liberdade de expressão surge, aquela que prima por
não negociar com ninguém, com causa nenhuma, com patrocinador nenhum,
com engajamento nenhum, com projeto social nenhum, e, principalmente,
não negociar com o marketing existencial, este vendedor de bens
imateriais de significado.
Entretanto,
se engana quem supõe que o oposto dessa virtude cívica estúpida,
conhecida como otimismo, seja o pessimismo. Claro que não compactuar com
o pacto cívico ao redor do otimismo implica uma certa dose do espírito de Schopenhauer (1788-1860), o que leva muitos a se equivocarem quando encontram um "espírito livre", como dizia Nietzsche (1844-1900).
Proponho,
como virtude oposta à virtude cívica contemporânea do otimismo, o vício
da profundidade, não o gozo da desgraça, como pensam os incautos do
intelecto.
E chamo atenção para a palavra vício neste contexto. Tomo emprestado aqui o brilhante ensaio de Elias Canetti
(1905-1994) "Hermann Broch, Discurso pela Passagem do seu Quinquagésimo
Aniversário, Viena 1936", que abre a coletânea "A Consciência das
Palavras", publicada no Brasil pela Companhia das Letras, em 2011.
Nesse
ensaio, poético como tudo que escreveu Canetti, o autor propõe três
grandes traços de comportamento que devem compor a personalidade e a
obra de um poeta. "Poeta", no ensaio, é uma profissão que se caracteriza
por um conjunto de elementos comuns à função do escritor e do pensador
público. A consciência das palavras passa por esses três grandes traços
de comportamento.
O
primeiro é a ideia de que a virtude máxima de um intelectual é o vício
de olhar tudo a sua volta com a obsessão de vasculhar o mundo e suas
sombras, para além do que ele gostaria de revelar —assim como um cão que
é escravo do vício de seu focinho a farejar tudo o tempo todo, analogia
do próprio Canetti.
Ao
contrário do que os superficiais pensam, o que lhes falta não é uma
virtude específica, mas um vício, aquele que impede os que o têm de não
investigar o que pode aprofundar seus olhares sobre o mundo para além do
bom comportamento. O contrário da virtude cívica do otimismo não é o
pessimismo, mas o vício da profundidade. O conhecimento é uma forma de
escravidão do intelecto a este vício.
O
segundo traço é o fato de o intelectual ser uma presa do seu tempo. A
tentativa de não o ser o torna cego e surdo. A terceira é a coragem de
ser contra tudo pelo qual sua época é apaixonada. Os dois parecem em
contradição, mas o que importa é essa mesma contradição: a harmonia não é
a casa do pensamento.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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