Desidratado na opinião pública, Bolsonaro tem grande capacidade de cavar o próprio abismo. Fernando Gabeira para o Estadão:
Como
tantos outros no passado, este agosto tem sido pesado na política.
Fala-se muito em golpe, tornou-se um tema tão banal que às vezes é
invocado até por cantores sertanejos.
De
tanto ouvir denúncias sobre suas intenções de dar um golpe, Bolsonaro
mudou o discurso. Aceita que está preparando o que chama de um
contragolpe. Onde foi buscar esse argumento?
Tudo
indica que a transmutação do golpe em contragolpe surgiu após o
encontro do vice-presidente Hamilton Mourão com o presidente do TSE,
Luís Roberto Barroso. Bolsonaro teria interpretado o encontro como um
golpe em marcha, no qual seu mandato seria cassado e o do seu vice,
preservado. Como se diz na gíria, noia pura. O TSE jamais cassou
mandatos de presidente. A chapa Dilma-Temer foi julgada e absolvida por
excesso de provas.
De
qualquer forma, Bolsonaro acredita que o termo contragolpe pode
absolvê-lo numa tentativa que o mundo inteiro vai considerar como ela é:
um golpe.
Nos
últimos tempos, os bolsonaristas buscam uma justificativa legal para o
golpe. Segundo o jurista Ives Gandra, o artigo 142 da Constituição
indica que as Forças Armadas são um poder moderador quando há conflito
entre os outros Poderes. Rigorosamente, em termos constitucionais as
Forças Armadas não são um Poder entre os três claramente mencionados. O
general Heleno, que andava meio calado, reapareceu com essa
interpretação no bolso do colete, cavando uma leitura constitucional
para edulcorar o golpe.
O
cientista político Sérgio Abranches acha que o golpe de Bolsonaro tem
uma característica híbrida. Ele subjuga progressivamente as
instituições, segundo o padrão autoritário moderno, mas pode combinar
essa tática com o movimento dos tanques nas ruas, a forma tradicional.
Na
verdade, Bolsonaro dedica grande parte de sua agenda a solenidades
militares. Ele não sai dos quartéis: nos últimos dias foi à formatura de
cadetes, discursou em promoção de generais, recebeu convite de um grupo
de tanques enfumaçados e foi pessoalmente assistir aos ensaios de
guerra em Formosa (GO). No passado, os políticos que frequentavam
quartéis para pregar o golpe eram chamados de vivandeiras. Bolsonaro não
chega a pregar um golpe nos quartéis, mas quer que as Forças Armadas ao
menos deem a impressão de que o apoiam.
Algumas
instituições democráticas já tombaram, como é o caso da
Procuradoria-Geral da República (PGR). Augusto Aras, como se diz de
carros velhos, só pega no tranco. Só investiga o presidente pressionado
pelo STF e, assim mesmo, sempre justifica o comportamento de Bolsonaro. A
PGR é tão pateticamente governista que chega a se contradizer na defesa
do bolsonarismo. Quando Roberto Jefferson era acossado pela Justiça do
Rio, o parecer do procurador era de que o caso deveria ser avaliado pelo
Supremo. Quando o STF prendeu Jefferson, a posição mudou: o caso
deveria ser enviado à primeira instância.
Aos
poucos, torna-se bastante nítido o quadro de tentativa de golpe e
resistência a ele. Treze governadores lançaram uma carta de apoio ao
STF, o próprio presidente do Senado indicou que não moverá processos de
impeachment contra ministros que Bolsonaro quer derrubar no momento.
No
entanto, a leitura mais importante da resistência ao golpe deveria ser
feita nas pesquisas que indicam claramente a desidratação de Bolsonaro
na opinião pública. Não é um fato novo, mas persiste e avança. Bolsonaro
pode ser derrotado no segundo turno até por um candidato da terceira
via. A desidratação pode jogar por terra um dos argumentos pelos quais
cantores sertanejos nos ameaçam com a fome e o caos: a adoção do voto
impresso.
A
tentativa de tumultuar o processo eleitoral com suspeitas de fraude só
tem sentido com resultados mais ou menos apertados. Se Bolsonaro for
reduzido, ao longo do tempo, ao apoio da extrema direita, algo que
parece provável, ficará muito longe da votação que obteve em 2018.
O
horizonte das eleições de 2022 não o demoverá de suas intenções
autoritárias. Ao contrário, quanto mais clara ficar a derrota, maior a
necessidade de apressar o passo e resolver o problema ainda este ano.
O
quadro mais amplo não é favorável: a retomada econômica não tem a força
esperada, os biomas brasileiros ardem e uma crise hídrica já presente
deve se agravar em novembro.
Bolsonaro
tem uma grande capacidade de cavar o próprio abismo. Jamais se importou
em manter os 57 milhões de votos que recebeu, e não só porque é movido
por um ódio radical às pessoas e à natureza. De certa forma, sua
ascensão eleitoral foi um acidente, que só pode ter acontecido pela
conjugação de falhas, exatamente como um grande desastre aéreo. Muito em
breve vai se encontrar com sua própria dimensão histórica e talvez até
ele se espante com o fato de ter ido tão longe.
Esses
são problemas um pouco teóricos para quem vier adiante e tiver de
compensar os prejuízos do imenso retrocesso que a passagem de Bolsonaro
pelo governo representou para o Brasil. Será um encontro com um país
diferente, com novos problemas, pedindo novas soluções.
Mas essa reflexão pode esperar um pouco, porque o elefante ainda está na sala.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário