Nascido nos Estados Unidos, foi logo adotado nos países anglo-saxônicos e só recentemente na Europa, aqui enxertado sobretudo numa extrema-esquerda vazia das suas causas sociais. Guilherme Valente via Observador:
Convergente
com a minha crónica “Rectificar os Nomes”, em que referi o wokismo como
um neo-obscurantismo e como um ultra-reaccionarismo que a
extrema-esquerda cavalga, trago agora a notícia de um ensaio publicado
agora por um autor francês, Charles Castet, que confirma o acerto e
aprofunda aquela minha dedução.
O
wokismo é uma crença de índole religiosa, mais precisamente um
sucedâneo não teísta do desvio calvinista do cristianismo, e não o
fenómeno político que vem sendo referido com o termo marxismo cultural.
É
um sistema de crenças fanáticas que se auto-descreve, usurpando, entre
outros, um termo que como julgo ter demonstrado, designa o seu
contrário: progressismo. Partindo, como o calvinismo, da consciência da
existência de injustiças sociais e raciais, afirma como aquele agir
radicalmente para as eliminar.
Coloquemos o wokismo em perspectiva – propõe Castet – evocando duas referências essenciais:
Em
primeiro lugar, a filiação intelectual entre o cristianismo e o
comunismo estabelecida por personalidades tão diversas como Dostoievski,
Aron, Camus ou Arendt.
No
prefácio de Os Irmãos Karamazov, Dostoievski escreveu que a questão do
comunismo nada tinha a ver com a questão dos trabalhadores, mas era, na
verdade, a criação do reino de Deus na Terra, a superação da “Torre de
Babel”.
Em
O ópio dos intelectuais, Raymond Aron destacou as várias afinidades
perversas entre o salvador proletário colectivo em Marx e o Messias
salvador colectivo na Bíblia, melhor, a semelhança entre o Partido e a
Igreja.
Em
L’Homme revolté, Camus disse que o comunismo é uma profecia. Toda a
profecia é justificada por revelação divina, nunca pela razão humana.
Razão
tenho eu, em chamar desde há muito ao BE seita. Prega proposições que
não são consistentes com a razão e revelam um carácter mórbido
salvífico.
E
o que aproxima o calvinismo do wokismo? “Independentemente dos pontos
teológicos que parecerão incongruentes ao leitor de 2021, os regimes e
soluções políticas resultantes do calvinismo (a República de Genebra, o
Governo dos Santos) tinham um duplo objectivo: estabelecer o reino de
Deus na Terra e a justiça total, radical.” Recordo o canibalismo com que
a população liberal de Amesterdão, embriagada pelos predicantes
calvinistas empenhados em levar ao poder Guilherme de Orange,
esquartejou os irmãos De Witt, governantes liberais.
Para
atingir esses objectivos, o sistema de governo de Calvino revestia-se
das seguintes características: um controlo social sem precedentes para a
época, a imposição da verdade mesmo fora das questões teológicas (e
estamos perto da Sharia), uma obsessão pela exigência da pureza moral
das relações sociais que se tornaram patológicas. (Se o leitor reparar,
algo que remete para o discurso de pureza do BE.)
Como
Stefan Zweig descreve em Conscience Against Violence, para esse
rebaixamento drástico da personalidade, para esse despojamento completo
do indivíduo para [suposto] benefício da comunidade, Calvino aplica um
método particular, a famosa “disciplina”. Desde a primeira hora, este
organizador genial encerra o seu “rebanho”, a sua “comunidade”, numa
estreita rede de artigos e proibições – as famosas “ordenanças” – e, ao
mesmo tempo, cria um consistório especial para supervisionar a sua
aplicação. Consistório, cuja tarefa define de forma extremamente
ambígua: “Zelar pela comunidade para que Deus seja devidamente honrado.”
E esse controlo da moral só aparentemente se limita à vida religiosa.
Como resultado da conexão completa entre o temporal e o espiritual na
concepção totalitária de Calvino, toda a vida privada passa a ficar
automaticamente sob vigilância do Estado; é assim que os membros do
Consistório, os “anciãos”, são incumbidos de fiscalizar a existência de
cada um. “Não apenas palavras, mas também opiniões e ideias devem ser
observadas.”
Não dirá isto nada a quem tenha hoje um olhar livre e atento ao que começa a verificar-se politicamente entre nós?
Zweig
continua: “Essa Gestapo de boas maneiras verifica tudo. Certifica-se de
que os vestidos das mulheres não são nem muito compridos nem muito
curtos, conta os anéis nos dedos. Na sala de jantar fiscaliza se não se
junta um pedaço de carne no único prato permitido ou se não escondem
doces nalgum lugar… E a inspeção alarga-se a todos os quartos. Vê se a
biblioteca contém algum livro que não tenha o selo da censura
consistorial, vasculha as gavetas para ver se alguma imagem sagrada ou
um rosário não foi aí.”
Um
século depois, na Inglaterra, durante a guerra civil, outro traço
emerge, a iconoclastia. O catecismo do soldado também recomenda, nesse
ano de 1644, livrar definitivamente o país das obras-primas da arte
medieval ou barroca que desviam da verdadeira fé. Esta fúria destrutiva
não se dirige tanto aos edifícios, relativamente intocados, quanto às
pinturas ou esculturas que representam Deus Pai, o Filho ou o Espírito
Santo, sem falar nas estátuas das Virgens, dos querubins, ao Pro Nobis e
outras fórmulas latinas “criminosas“ que assaltam a alma com os suas
sugestões perturbadoras” (Bernard Cottret, Cromwell). Não remete ou
lembra isto para fenómenos de hoje? Nessa biografia de Cromwell, Cottret
descreve bem o clima de alucinação espiritual da época em que os
protestantes pensavam que o Papa era o anticristo que recebia instruções
directamente do diabo. Algo de que a Inquisição católica não ficou
atrás.
Após
a restauração da monarquia inglesa, em 1660, estes ramos do
protestantismo fundaram colónias teocráticas na América, que se
transfigurariam no messianismo americano, cujo poder cresceu com o
surgimento dos Estados Unidos como superpotência e as sucessivas
vitórias militares na Guerra da Independência, na Guerra Civil, nas duas
guerras mundiais.
Animando
esses grupos, manifestou-se também um pietismo pós-milenarista que
conquistou áreas ianques do protestantismo do Norte na década de 1830,
forma evangélica agressiva que conquistaria o protestantismo do Sul na
década de 1890 e desempenhou um papel crucial na viragem do século e
durante a Primeira Guerra Mundial, impelindo os pietistas a usar os
governos local, estadual e, finalmente, federal para erradicar o pecado,
tornar a América, e eventualmente o mundo, sagrados, erguendo assim o
Reino de Deus na Terra, vocação de algum modo presente na obsessão
norte-americana de levar com o seu expansionismo económico imperial
todos os povos do mundo para “o lugar certo da História”, mesmo que o
não queiram. Foi crucial o papel desse protestantismo pietista nos
governos estatizantes nos Estados Unidos. O seu objectivo é a salvação
dos homens e fazer o melhor significa que o Estado assuma o papel
central de erradicar o pecado e tornar a América sagrada. Marcante foi
um programa político elaborado pelo Conselho Federal de Igrejas
(proveniente do ramo principal do protestantismo com raízes
calvinistas), descrito como “superprotestante”, muito próximo do que é o
wokismo de 2021.
Uma
versão secularizada apareceu também no credo do amor universal das
décadas 1960-1970, no movimento então dito de contra-cultura, que
estaria na origem dos hippies e dos festivais cujo espírito e forma
sugeriam celebrações pagãs.
E
eis revelada a explicação para a origem do wokismo, lugar de onde a
Europa, humanista e universalista, com uma tradição que lhe é alheia, o
viria agora a importar. E por que ocultam os wokistas dos vários
registos a genealogia, essa ligação directa com os puritanos dissidentes
ingleses de ontem? Primeiro, porque o progresso do conhecimento torna
mais credível a crença se for apresentada como fruto da razão, em vez de
revestir o carácter de fé religiosa. Outra razão porque nunca
admitiriam a descendência directa do calvinismo, é a afirmação da
universalidade totalitária do credo, de que nenhum indivíduo no mundo
pode duvidar e escapar, irredutível a qualquer religião ou ausência
dela.
Mas
um elemento que contradiz a universalidade do wokismo é precisamente a
sua localização geográfica desigual. Nascido nos Estados Unidos, foi
logo adoptado nos países anglo-saxónicos e só recentemente na Europa,
aqui enxertado em heranças vagas e remotas de algo análogo, mas
sobretudo numa extrema-esquerda vazia das suas causas sociais e orfã das
grandes narrativas totalitárias do século XX. Wokismo, repare-se, quase
ausente na Ásia e em África, excepto na Coreia do Sul, onde um quarto
da população é protestante. Esta origem é confirmada pelo itinerário da
irradiação cartográfica do movimento na Europa: Reino Unido, Holanda,
Norte da Alemanha e Escandinávia, só depois a França (que porventura não
seria como está a ser se não se lhe juntasse uma ligação que à frente
referirei), Espanha, Itália e outros países da Europa Central e
Oriental. E é quase inexistente noutros lugares, com a resistência total
última na China.
Os
discursos woquistas seguem o mesmo padrão do discurso da atriz
activista Adèle Haenel. Está lá tudo: culpa, angústia – que eu referi,
recentemente, como característico do discurso pregador do BE e dos seus
dirigentes, em Louçã caricatural: culpa, arrependimento, desejo de
absolvição, esperança de se livrar do pecado, construção individual da
salvação, busca pela justiça na sua expressão maior, e, finalmente, a
conversão.
E
é exactamente tudo isto – voilà! – que aproxima o wokismo e o novo
esquerdismo ultra-reaccionário do… integrismo islamista, com a
sobreposição da lei religiosa e civil. Uma ligação que não é, afinal,
contra-natura (como seria no caso da extrema-esquerda marxista
original), mas se revela à luz que referi, bem natural.
Para
terminar, pergunta Castet, “o que devemos fazer?” Neste tempo,
acrescento eu, em que vivemos assombrados por movimentos com a origem e
a natureza referidas e um cariz que os aproxima cada vez mais, no
objectivo e nos métodos, de uma realidade como a do nazismo? Em que o
debate racional que podia ser libertador está a ser progressivamente
interdito?
“O
que fazer numa perspectiva liberal?” Recolhermo-nos, qual Montaigne, a
uma torre que já não se vê onde encontrarmos (ver o no Observador o meu
artigo “Da Torre de Montaigne“)? Ou erguer a palavra da resistência e liberdade, como Raymond Aron ergueu nos anos 1950?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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