Não me queixo destes dias enclausurados. Mas, por vezes, confesso, sinto a falta da natureza imediata, e real da realidade habitual, do mar e das montanhas. Via Observador, a crônica do professor Paulo Tunhas:
É
impressionante como certas coisas, em si mesmas insignificantes, ficam
guardadas na memória. Há muitos, muitos anos, o Expresso publicava uns
inquéritos de Verão em que convidava certas individualidades a darem
conta ao público do que aconselhavam como leituras de férias no manso
repouso face ao mar. Duas das respostas nunca me saíram da cabeça. Uma, a
de um poeta menor português, hoje já morto, sugeria a lírica de Camões.
Outra, a da dirigente socialista Edite Estrela, então famosa por um
programa televisivo em que introduzia a população aos envolventes
mistérios da arte de falar correctamente português, recomendava “A
origem da obra de arte” de Heidegger (além da escuta do Requiem de
Verdi, que, sentiu-se na obrigação de explicar, preferia ao de Mozart).
Nada
me move, é claro, contra qualquer destas obras, mas a ideia de voltar à
toalha, depois de um mergulho, e de dar de caras com “Quando de minhas
mágoas a comprida / maginação os olhos me adormece, / em sonhos aquela
alma me aparece / que para mim foi sonho nesta vida”, ou “O que é, na
verdade, uma coisa, na medida em que é uma coisa?” é uma ideia que não
me parece particularmente sensata. Ler pela enésima vez as aventuras de
Johnny Fletcher e de Sam Cragg a tentarem arranjar dinheiro para pagar o
quarto de hotel parece-me francamente mais adequado ao tempo, ao lugar,
e até, se me é permitido, à decência e aos bons costumes.
Senti-me
na necessidade de oferecer esta breve introdução porque Agosto está aí e
o meu assunto de hoje apresenta uma considerável elevação espiritual.
Mas tenho uma desculpa de peso para tal elevação. Por um azar da vida,
estou este Verão fechado em casa, a testar a minha fortitude, à espera
de melhores dias, que ignoro por inteiro se virão. Para piorar tudo, a
fortitude não é o meu forte e, como sempre, o pior é sempre o mais
provável. Só resta mesmo a elevação.
Nisso,
no entanto, sou, era o que me faltava ser modesto!, claramente
imbatível. E passo as horas que o dia dura e as que a noite permite numa
oscilação entre o sagrado e o profano. Mais precisamente, entre as
cerca de duzentas cantatas sagradas que chegaram até nós de Bach e os
aproximadamente seiscentos lieder que Schubert compôs. Como não gosto de
fazer as coisas pela metade, tenho acompanhado a música com a leitura
de dois livros escritos por grandes intérpretes de Bach e de Schubert: o
Music in the Castle of Heaven, de John Eliot Gardiner (que gravou a
integralidade das cantatas) e o maravilhoso Schubert’s Winter Journey.
Anatomy of an Obsession, de Ian Bostridge (que cantou muitas obras de
Schubert), o melhor guia que se pode imaginar para o célebre Winterreise
e para os poemas de Wilhelm Müller. Voltei também ao The Romantic
Generation, de Charles Rosen, e ao livro que o grande Dietrich
Fischer-Dieskau consagrou aos lieder de Schubert a partir da sua
inigualável experiência como intérprete de todas as canções para voz de
homem. E li, é claro, os textos de grande parte das cantatas e dos
lieder. Em intervalos pungentes e dilacerantes sonho com o mar e com
montanhas. Mas a elevação, em todo o caso, nunca verdadeiramente me
abandonou.
Não
há talvez lugar algum em que as significações imaginárias da fé cristã
encontrem uma tão completa expressão sensível como nas cantatas sagradas
de Bach, excepto, é claro, se pensarmos na Paixão segundo Mateus, que,
permita-se o dogmatismo, não é apenas a mais grandiosa de todas as obras
musicais: é a maior obra de arte que o espírito humano alguma vez
criou. Quando o coro, no decisivo momento da escolha, grita Barabbam!,
quem permanecer no seu estado normal e não for tomado de uma emoção
vertiginosa em que o físico e o mental se indistinguem, não é, pura e
simplesmente, um ser humano (pessoalmente, quando quero comparar
diferentes interpretações da Paixão, vou directamente a essa passagem,
que me serve como pedra-de-toque da interpretação da obra). Mas as
cantatas, mesmo que não cheguem verdadeiramente nunca a atingir essa
grandeza impronunciável, todas elas, embora em graus diferentes,
ilustram magnificamente, combinando a tradição retórica sobre a qual
assenta a música barroca com o génio inventivo de Bach, os aspectos
decisivos da fé cristã, tal como eles são capturáveis por alguém que,
mesmo ateu, tenha sido formado pelo cristianismo, como nós todos fomos.
Está
lá o essencial. As paixões cristãs da tristeza e da alegria estão lá
todas. A alegria da fé é real, tal como a tristeza da dor o é. Não há
praticamente cantata que não exprima musicalmente o balanço entre ambas.
Do lado da tristeza estão a dor, a morte, a angústia, o temor, a
preocupação, a aflição, a agonia, os cuidados, a infelicidade e as
lágrimas. Do lado da alegria, a que conduz o caminho da fé, através de
uma transfiguração, estão a vida (a vida que traga a morte), o amor (a
Deus e aos irmãos humanos – Gardiner tem óptimas páginas sobre isso), a
bondade, a calma, a paz, a graça, a saúde, a salvação. O agente da
passagem do primeiro grupo de paixões para o segundo é obviamente
Cristo. Valeria a pena listar em detalhe as paixões, mas o que é mais
impressionante é o modo como a música – digo bem: a música – de Bach
torna sensíveis essas oposições. A coisa é de uma grandeza sem nome. Não
se sai desta música como se era antes, há uma inteligibilidade das
paixões que se ganha muito para lá do que a experiência comum permite. É
como se elas nos fossem explicadas, ou, mais do que explicadas,
exibidas com a evidência que só a maior arte permite. E, sendo uma
música concebida para a glória de Deus, é, ao mesmo tempo, a mais humana
das músicas, aquela que mais intimamente nos diz respeito.
Ian
Bostridge escreve que, depois da última canção da Viagem de Inverno,
Winterreise, o maior ciclo de lieder de Schubert, “o silêncio é
palpável, a espécie de silêncio que de outra maneira só uma Paixão de
Bach pode convocar”. Pura verdade. A ideia de ciclo (que, como Gardiner
mostrou, é já, à sua maneira, instrumental na criação das cantatas de
Bach) é fundamental na criação do lied romântico. Schubert, no
seguimento de Beethoven (o Beethoven de An die ferne Geliebte) e
antecipando Schumann, leva a ideia de ciclo à sua perfeição. É
importante ter em consideração que, nos ciclos, como o nota Rosen, não
há verdadeiramente uma narrativa (excepto, tardia e imperfeitamente, em
Brahms), há apenas imagens entre as quais, mais ou menos
inconscientemente, estabelecemos um nexo, expectativas para as quais não
há preenchimento assegurado, para usar expressões que o filósofo
Fernando Gil longamente desenvolveu. Tais imagens exprimem o culto
romântico do fragmento e das ruínas, que são uma espécie de fragmentos
póstumos.
Nos
ciclos, como, de resto, em grande parte dos lieder de Schubert, a
imagem da natureza é omnipresente. Ela ocupa, à sua maneira, o lugar de
Deus nas cantatas de Bach. Há montanhas, rios e ribeiros, lagos, mar,
árvores, bosques, florestas, flores, animais, lua, sol, estrelas,
manhãs, entardeceres e noite e estações do ano (excepto, não tão
surpreendentemente quanto isso, o Verão). Mas a natureza é
consistentemente associada à imagem da amada ou do próprio sujeito que
nela se vê reflectido. E o amor – Winterreise é talvez o melhor exemplo
disso – à ideia de dor, duas paixões que vimos oporem-se em Bach e que
música de Schubert não menos veementemente exprime. Schubert, de resto,
estava plenamente consciente da coisa, tendo escrito: “Sempre que tentei
cantar o amor, deparei-me com a dor. E, por sua vez, quando tentei
cantar a dor, deparei-me com o amor.” A grandeza extraordinária da
Viagem de Inverno tem, por isso, qualquer coisa de terrível. E, sendo
terrivelmente humana, é, ao mesmo tempo, divinamente terrível e,
provavelmente, muito mais religiosa, à sua maneira, do que as
composições propriamente religiosas de Schubert.
O
romantismo, que Schubert, sendo ainda, no essencial, um clássico, o
último dos clássicos, antecipa, representa um dos momentos fundamentais
da conceptualização da natureza. O romantismo alemão e o romantismo
inglês (basta pensar em Wordsworth, que, além de tudo, foi um grande
teórico do pitoresco na paisagem natural), mas também, embora em muito
menor escala, o romantismo francês (Oberman, de Senancour, que inspirou
um outro romântico, Liszt, nos “Anos de peregrinação”). (O “romantismo”
de Schubert é, de facto, algo muito curioso: é como se uma expectativa
(clássica) resultasse num preenchimento pleno, numa perfeita
confirmação, mas tal preenchimento, tal confirmação, fossem diferentes
do que seria mais natural, isto é, se dessem no interior de uma ordem já
romântica. A criança não chega morta a casa, como no Rei dos Elfos,
Erlkönig, de Goethe, musicado por Schubert. A expectativa não é
frustrada, a criança é apenas diferente. Acontece na história da arte – e
na vida.) Mas é uma natureza que se encontra investida, de uma forma ou
de outra, pela presença humana. Se quisermos uma natureza concebida a
partir de um movimento essencialmente inverso, tal como se revela numa
poesia que só muito recentemente descobri, é ler os poetas chineses da
dinastia Tang: Li Po, Tu Fu e Wang Wei, por exemplo. Aí, é o poeta que
se identifica com a natureza – é uma montanha, é uma árvore -, não a
natureza que serve de imagem na qual o poeta se revê. Dito isto, ambas
as soluções são boas, e a grandeza da visão romântica da natureza
permanece intocada.
Mas
mais intocável do que tudo é a música. A música de Bach, escrita em
glória de Deus, mas iluminando como nenhuma outra a natureza das paixões
humanas, ou a música de Schubert, que alçou as paixões humanas a um
plano de intensidade religiosa.
Não
me queixo, por isso, destes dias enclausurados. Mas por vezes,
confesso, sinto a falta da natureza imediata, e real da realidade
habitual, do mar e das montanhas. Sente o meu espírito e sente o meu
corpo. Em vez da elevação, queria o mergulho. E, já agora, sinto também a
falta dos meus amigos Johnny Fletcher e Sam Cragg dos policiais de
Frank Gruber. Este Verão lembra-me a primeira linha de Winterreise, só
que aqui sem mistério nenhum: “Cheguei como um estranho, como um
estranho parto.”
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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