O experimento israelense dá uma amostra de como deve ser o mundo quando a pandemia finalmente deixar de ser uma ameaça. Gabriel de Arruda Castro para a revista Oeste:
É
meio da tarde em Mea Shearim, um dos bairros de maioria haredi
(ultra-ortodoxa) em Jerusalém. As calçadas estão tomadas por crianças
que acabaram de sair da escola local (e, como os haredis têm em média
sete filhos, há meninos por toda parte). Nas lojas da Rua Malkei, a
artéria comercial do bairro, famílias inteiras entram e saem a todo
momento. A indumentária inclui chapéu para os homens e uma espécie de
lenço na cabeça para a maior parte das mulheres. Mas a máscara não faz
parte do figurino.
Não
muito longe dali, na pequena Igreja Católica que oferece missas em
hebraico na capital israelense, uma única taça de vinho é compartilhada
entre os fiéis na hora da comunhão (a auxiliar do padre passa
rapidamente um guardanapo na borda da taça entre uma pessoa e outra). Do
outro lado da cidade, horas depois, em uma celebração de Shabbat (o
sábado, dia sagrado para os judeus) em uma família de judeus etíopes, a
cena se repete: como diz a tradição, a refeição é iniciada com o
repartir de um mesmo pedaço de pão, que passa de mão em mão, e de uma
taça de vinho da qual todos os convidados bebem. Ninguém usa máscara.
Também
não há máscaras no bar moderno na orla de Tel Aviv, a principal cidade
litorânea de Israel, no que parece ser uma festa de aniversário animada
por música pop em hebraico. A poucos metros dali, as praias e o calçadão
estão lotados, em um verão em que raramente a temperatura fica abaixo
dos 30 graus durante o dia.
Estive
em Israel por duas semanas, de 1º a 14 de agosto, com uma organização
sem fins lucrativos com base nos Estados Unidos. Foi uma oportunidade de
vislumbrar como será a vida depois da pandemia. Na superfície, tudo em
Israel parece normal. Mas também é verdade que as autoridades
israelenses não querem baixar a guarda e ainda enfrentam incertezas
sobre as medidas de contenção do vírus.
O
experimento israelense dá uma amostra de como deve ser o mundo quando a
pandemia finalmente deixar de ser uma ameaça: ajustes constantes nas
políticas estatais. Avanços e recuos. Para os turistas, testes, muitos
testes (ao todo, fiz quatro em solo israelense). Sim, é preciso tomar a
vacina para entrar. Não, a CoronaVac não é aceita. Não, passageiros
vindos do Brasil ainda não são autorizados a visitar Israel (a não ser
que passem duas semanas em um dos países fora da “lista negra”
israelense, como os Estados Unidos).
Também
precisei fazer um teste de covid 72 horas antes do embarque, ainda em
solo americano. Chegando lá, mais três testes — dois do tipo PCR, para
determinar a presença do vírus, e um exame de sangue, para confirmar que
a vacina de fato criou anticorpos. Só então estávamos finalmente
livres. Ou quase todos: no grupo de 12 pessoas em que estava, uma não
passou pelo teste de anticorpos e precisou ficar sete dias confinada num
hotel. Ah, sim, para deixar o país também é necessário fazer outro
teste. Quem tem o vírus precisa de outra quarentena e não pode embarcar.
Mas
essas são as normas para turistas. Uma caminhada pelas ruas de Tel Aviv
ou Jerusalém basta para notar que, para quem mora em Israel, a pandemia
parece ter ficado para trás. E faz sentido: no agregado, a vacina está
disponível para todos há meses, e a taxa de mortes é similar à do Canadá
e melhor do que a da Alemanha, Áustria, Suíça e Holanda.
A
taxa de vacinação em Israel acelerou rapidamente no começo deste ano,
graças à capacidade de mobilização do governo e da sociedade
israelenses. Isso deixou o país em primeiro lugar no ranking de
imunizações. Na primeira semana de março, 44% da população já havia sido
completamente vacinada.
O
povo de Israel aprendeu faz tempo que, para sobreviver como nação
livre, precisa ser capaz de esforços coletivos com agilidade,
planejamento — e uma dose de sacrifício. Todos os jovens precisam se
alistar nas Forças Armadas, inclusive as mulheres. As ameaças constantes
de mísseis enviados pelos palestinos, em Gaza, ou pelo Hezbollah, na
fronteira com o Líbano, também ensinaram os israelenses a tomar a
iniciativa. O governo precisa ser eficiente, a sociedade civil precisa
ser proativa e a população precisa confiar no governo. Se um desses
elementos falhar, a existência do país está em risco. E isso não é um
exagero.
São
9 milhões de pessoas espremidas sobretudo em uma pequena faixa de terra
entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo. Tel Aviv, a segunda maior
cidade israelense, está a apenas 60 quilômetros da Faixa de Gaza,
controlada pelo grupo terrorista Hamas. Das montanhas do Deserto da
Judeia, na região central do país, é possível ver, de um lado,
Jerusalém, e do outro, a Jordânia — país com o qual Israel já guerreou
no passado. A distância é de apenas 40 quilômetros. Ainda mais perto
fica a cidade de Ramallah, sede da Autoridade Palestina. Na fronteira
norte, vilarejos israelenses ficam a 1 quilômetro da área controlada
pelo Hezbollah no Líbano.
Forjados
por essa ameaça constante e pela necessidade de que cada casa seja uma
unidade de defesa, os israelenses parecem ter aplicado a lição no
combate ao coronavírus — sem, entretanto, abrir mão de suas rotinas.
E
existem razões para crer que a população de Israel tem características
peculiares. De acordo com um índice desenvolvido pelo pesquisador
holandês Geert Hofstede, que dedicou sua carreira a estudar as
diferenças socioculturais entre os países, o povo israelense é pouco
individualista quando comparado aos demais países desenvolvidos. Nesse
critério, em uma escala de 1 a 100, a nota de Israel é de 54, contra 91
nos Estados Unidos, 89 no Reino Unido, 76 na Itália, 71 na França e 69
na Noruega. Neste critério, os israelenses se aproximam mais dos
japoneses (46 pontos na mesma escala).
O
Brasil é ainda menos individualista que Israel: a pontuação 38, na
mesma escala. Mas aqui entra uma segunda variável. Israel tem uma das
performances mais baixas entre todos os países no critério “distância do
poder”. A nota de Israel é de 13, em uma escala de 0 a 100 (contra 31
na Noruega, 40 nos Estados Unidos, 68 na França e 69 no Brasil). Isso
significa que os israelenses têm aversão a líderes autoritários e prezam
pela igualdade. “Com uma visão igualitária, os israelenses acreditam na
independência, nos direitos iguais, em líderes acessíveis e em uma
gestão que medeia e dá poder”, resume o relatório de Hofstede.
Alto
coletivismo e alta dependência do Estado (caso do Brasil) formam uma
combinação perigosa. Alto coletivismo e alta independência (caso de
Israel) são os traços de um povo altivo e que não se apoia no governo
para fazer aquilo que pode por conta própria. A combinação entre o baixo
individualismo e a distância do poder ajuda a explicar, portanto, a
singularidade de Israel e sua sociedade, que, embora confie nos
governantes, prefere ser autossuficiente. Parece ser essa a combinação
que permitiu aos israelenses largar na frente na retomada da vida
normal, apesar dos percalços no caminho.
As
coisas pareciam muito bem encaminhadas em junho. O número de casos
despencava, o de mortes diárias chegou a zero e o governo anunciava a
reabertura geral das fronteiras para julho. Mas a variante Delta fez a
curva de contágios voltar a crescer e levou o governo israelense a
colocar o pé no freio nos planos de reabertura e a adiar o ingresso de
turistas — exceto em grupos com autorização especial do governo. E, de
certa forma, o meu grupo teve sorte. Preocupado com a elevação no número
de novos casos de covid, o governo endureceu as regras. A partir de
agora, quem entra em Israel precisa passar por uma quarentena de sete
dias obrigatória para todos os visitantes, sem exceção (uma comitiva de
parlamentares americanos que deveria ter visitado o país nesta semana
acabou cancelando a viagem por causa das novas regras).
Sem
turistas, será difícil que a vida volte completamente ao normal em
Jerusalém. As lojas que permanecem abertas exibem cartões-postais já
amarelados, um ano e meio depois que as fronteiras globais se fecharam e
o fluxo de turistas cessou. O turismo é parte importante da economia
local, e as muitas lojas fechadas no Quarteirão Cristão de Jerusalém
atestam que a pandemia continua tendo efeitos visíveis também em Israel.
O país recebeu 4,5 milhões de turistas em 2019. É metade da população
fixa do país. Com o adiamento da abertura das fronteiras, muitos
israelenses terão dificuldade em retomar a rotina.
É
provável, entretanto, que as crianças de Mea Sharim continuarão indo à
escola livremente, que a missa continuará sendo feita nos moldes
costumeiros e que as tradições do Shabbat continuarão sendo seguidas à
risca. Para um povo que resistiu a quase 2 mil anos de exílio,
sobreviveu ao Holocausto e já lutou nove guerras nos últimos 80 anos, a
covid-19 parece um obstáculo menor.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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