A situação fica cada vez pior no aeroporto que é a única esperança de salvação para milhares - e só os talibãs estou impedindo tragédia maior ainda. Vilma Gryzinski:
O
grito de socorro de mulheres prensadas contra as grades do aeroporto de
Cabul deveria ficar gravado na consciência dos responsáveis por seu
desespero – todas as autoridades americanas que endossaram ou não
resistiram às determinações de Joe Biden para promover a desastrosa
retirada americana do Afeganistão, mesmo sabendo que o Talibã acabaria
tomando o país inteiro.
Foi muito mais rápido do que todos os prognósticos, mas a responsabilidade continua do mesmo tamanho.
Ironicamente,
só não tem mais gente, o que aumentaria o potencial de tragédias,
porque são os talibãs que estão cercando o aeroporto e impedindo que
outros desesperados cheguem para tentar embarcar nos aviões americanos
de resgate. Em compensação, americanos e outros estrangeiros não estão
conseguindo chegar para tomar os aviões enviados por seus países por
causa da massa humana no caminho.
Por
enquanto, o Talibã está seguindo uma política bem pensada: deixar que
os americanos partam, com sua imagem mais destroçada a cada avião que
decola, numa retirada apressada e humilhante. Afegãos que trabalharam
para eles, ou para qualquer organização estrangeira, estão conseguindo
embarcar quando têm sorte de passar por todas as barreiras.
Mas
a realidade é que não existe chance de que todas as pessoas incluídas
nessa categoria consigam fugir. Os talibãs têm todo o tempo do mundo
para um futuro acerto de contas e já surgem os primeiros relatos de que
estão indo de porta em porta, em busca de militares, policiais e
colaboradores de organizações estrangeiras com um recado: ou se
apresentam voluntariamente, ou suas famílias serão tratadas “segundo a
charia”.
Pelos
padrões do passado, estão até seguindo bem a orientação de se mostrar
mais moderados, apesar de incidentes isolados como os tiros disparados
contra uma pequena multidão que, numa inacreditável demonstração de
coragem, saiu à rua em Jalalabad, hasteando a bandeira nacional que os
fundamentalistas já haviam trocado pela sua, branca, com inscrições do
Corão em preto.
Por
padrões do passado entenda-se o seguinte: em 1996, quando os talibãs,
então misteriosos e quase desconhecidos em Cabul, emergiram para tomar o
poder no país destroçado pela guerra civil, uma de suas primeiras
providências foi capturar Mohammad Najibullah, o presidente do regime
comunista que havia dominado o país num de seus vários períodos
delirantes.
Najibullah
já não tinha poder e vivia sob proteção da ONU, na vã esperança de
conseguir salvo-conduto para sair do país. Conhecido como Touro, pelo
tamanho e imponência, tendo obviamente sua própria lista de atrocidades,
ele foi castrado, amarrado na traseira de uma caminhonete Toyota e
pendurado num poste.
Hoje,
o Talibã 2.0 preparou uma cena quase tão inacreditável quanto a
execução do Touro, no sentido oposto. O ex-presidente Hamid Karzai, que
modestamente deu o próprio nome ao aeroporto onde hoje se desenrolam as
trágicas cenas da retirada americana, foi convidado a negociar com um
representante do Talibã, também líder de uma das mais violentas facções,
a Rede Hakkani.
Karzai
estava sorridente e elegante, com o mesmo tipo de roupa tradicional que
levou o estilista Tom Ford a defini-lo em 2002 como “o homem mais
chique do mundo”. Naquele tempo, Karzai era um dos mais importantes
aliados dos Estados Unidos na guerra ao Talibã e seus comparsas da Al
Qaeda.
O
ex-presidente estava acompanhado por outra figura conhecida dos
americanos, o ex-ministro redundantemente chamado Abdullah Abdullah,
chefe da comissão de reconciliação criada pelo governo que desmoronou em
um dia, com a entrada dos talibãs em Cabul.
O
fato de que políticos como Karzai e Abdullah não tenham fugido, como
fez o presidente Ashraf Gani, é uma prova cabal de que o Talibã estava
negociando a mudança de regime de forma sistemática e profissional – e
provavelmente com alguma dose de participação do Catar, o emirado onde
se concentram os líderes que agora começam a voltar ao Afeganistão
Enquanto
os líderes talibãs posam de magnânimos e profissionais, a elite
burocrática americana tenta empurrar o abacaxi para longe de seu prato.
“Fontes” da CIA estão plantando que avisaram o governo da iminência da
vitória dos fundamentalistas e até os mais fiéis democratas estão
encontrando dificuldade em achar algo de bom para dizer sobre Joe Biden.
“Nem
eu nem ninguém vimos nada que indicasse o colapso do exército e do
governo em onze dias”, esquivou-se o chefe do estado-maior, general Mark
Milley – um dos vários comandantes americanos que estão parecendo,
melancolicamente, uma versão piorada dos três patetas.
“A
vitória tem mil pais, mas a derrota é orfã”, disse John Kennedy quando
assumiu a responsabilidade por um abacaxi que tinha sido gestado no
governo anterior, de Dwight Eisenhower, a fracassada invasão da Baía dos
Porcos, em 1961.
Largados
à própria sorte, os cubanos anticastristas treinados pela CIA foram
mortos ou capturados (mas o governo americano negociou um “resgate”: 53
milhões de dólares em alimentos e remédios, doados por empresas, em
troca da libertação de 1.103 prisioneiros mandados de volta para os
Estados Unidos; o regime cubano só não soltou nove dos líderes da
operação).
Por
mais terrível que seja a situação em Cabul, sempre há espaço para
piorar. Ian Bremmer, do Eurasia Group, fez especulações assustadoras
sobre as possibilidades mais negativas.
“Ainda
há muitos americanos que queremos tirar de lá. E se houver uma crise de
reféns? E se houver troca de tiros? E se americanos forem mortos? Isso
destruiria a presidência de Biden”.
E sobre afegãos e afegãs, como as mulheres desesperadas no aeroporto de Cabul?
“Se
a única coisa que acontecer for a debacle que estamos assistindo,
envolvendo afegãos, não sei se haverá efeitos duradouros para Biden”.
Tradução: se não ficar pior do que já está, os afegãos que se virem.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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