Agora, mais do que partidos de direita ou de esquerda, da recuperação pífia das grandes bandeiras caducas dos anos 60 e 70, urge encontrar respostas para os desafios dos tempos. Rodrigo Adão da Fonseca para o Observador:
Nas últimas semanas e a propósito da Convenção do MEL – Movimento Europa e Liberdade,
o espaço mediático assistiu a uma tentativa de cancelamento do debate
público, protagonizada por vários agentes que, de uma forma ou outra,
aproveitaram a ocasião para questionar se a “Direita” tem, ou não,
futuro como alternativa de Governo, e quais as vozes que devem ter voz,
no debate público. Da minha parte, mais do que estar a comentar o que lá
se passou, ou alimentar polémicas profundamente desinteressantes, e uma
vez que as aspirações do MEL, de ser “uma plataforma de intervenção
cívica que possa apresentar à sociedade, e aos partidos políticos,
reflexões e medidas que permitam um horizonte de esperança para Portugal
na modernização e na liberdade”, me parecem louváveis, aproveito as
linhas desta coluna para juntar a minha contribuição para o debate.
A
meu ver, vivemos hoje uma profunda agonia, fruto da incapacidade de
acompanhar as disrupções da segunda vaga da revolução digital, ou
Revolução 4.0., e de alinhar o mundo político e a sua ação, com as
inúmeras transformações económicas e sociais, em curso, sendo essa a
raiz fundamental da caducidade, não só do espaço da direita, mas de todo
o espectro político-partidário.
O
Estado Moderno, tal como o conhecemos, foi pensado a partir das
premissas da legitimação popular do poder, da separação dos poderes,
mas, sobretudo, da ideia de que o Estado existe para defesa dos cidadãos
e promoção do Bem Comum: as pessoas estariam disponíveis para
voluntariamente prescindir parcialmente das suas liberdades,
submetendo-se às leis da sociedade e do Estado, em troca de um ambiente
de paz e segurança onde cada um pudesse ter espaço para atingir as suas
legítimas aspirações. Esta relação entre o cidadão e o Estado foi
metaforicamente apelidada de “contrato social”, e explicada de formas
não necessariamente alinhadas por pensadores como Thomas Hobbes, John
Locke ou Rousseau.
A
afirmação do Estado Moderno deve ser vista também como resposta
política ao período de expansão económica resultante das três primeiras
revoluções industriais, onde o mundo dito ocidental operou uma transição
acelerada de economias muito baseadas na manufatura para um ambiente de
produção em que a automação, novas formas de energia e matérias-primas,
alteraram drasticamente as condições de vida de toda a população, com
impactos diretos em todos os aspetos do quotidiano. Se esta confirmação
do Estado Moderno e as revoluções industriais (mormente as limitações
impostas pela chamada “vida em sociedade”), coincidem com um período de
otimismo e melhoria significativa das condições de vida e de liberdade,
sem precedentes na História da Humanidade, tal não nos deve, porém,
fazer esquecer que o processo não foi linear, nem deixou de se fazer em
clara tensão e luta contra ideologias que, sobretudo no século XX, tudo
fizeram para eliminar a separação de poderes e diluir as liberdades no
próprio Estado, projetando-o como prescritor de um Bem Comum que não
aceitava a soberania popular, a separação de poderes, o pluralismo e uma
noção de felicidade definida por cada um.
A
terceira revolução industrial, operada no pós-guerras, entre 1950 e
1970, desenhou-se a partir da computação, do aperfeiçoamento dos
sistemas industriais e das comunicações, dando sequência às melhorias
resultantes da industrialização em massa associada à segunda revolução
industrial (1870-1945), esta fortemente ancorada nos benefícios
retirados da utilização da eletricidade e do aço. Entre 1970 e o fim do
século XX, a economia mundial limitou-se a melhorar os processos
resultantes das disrupções anteriores, levando ao limite as capacidades
de produção, integrando-as e difundindo-as a toda a escala do planeta:
zonas geográficas como o Japão, China e todo o Sudoeste Asiático, ou a
América do Centro e do Sul, viveram – à sua maneira – em menos de um
século as transformações económicas e sociais que, na Europa e nos
Estados Unidos, se estenderam por vários séculos.
Com
o advento do novo milénio, e de uma forma só tangível nos últimos dez
anos, o mundo tem vindo a submeter-se às disrupções causadas pela quarta
revolução industrial. A chamada Revolução 4.0. tem como alavanca de
transformação o tratamento de dados numa escala tida como inimaginável
há uns anos atrás. Integrando computação, tratamento em larga escala, e
automação com base em inteligência artifical, a Revolução 4.0. tem
alterado o modo como nos relacionamos com a criação, como consumimos,
como trabalhamos, como aprendemos ou nos divertimos, ampliando a
fronteira das oportunidades de produção e o modo como conjugamos os
fatores, muito para lá das conceções próprias do período anterior,
gerando fórmulas de conhecimento e valor que estão drasticamente a mudar
as regras e a vivência em sociedade.
Ao
contrário do Estado Moderno, que foi a expressão política das três
revoluções industriais anteriores, aproveitando para se afirmar no clima
de expansão económica e social desse período, hoje assistimos a um
profundo desalinhamento entre a resposta política e as disrupções em
curso. Pensemos no Welfare State, por exemplo. Ele corresponde a uma
resposta política que encontrou suporte no clima de expansão económica,
demográfica e social do pós-guerra, merecendo um grau de aceitação
transversal por parte das democracias e, até, “não-democracias”, nos
anos 50 a 80. Hoje, em matéria de previdência, constatamos que grande
parte das políticas públicas estão progressivamente a desalinhar-se das
aspirações de uma boa parte dos cidadãos e, sobretudo, dos desafios e
das necessidades do futuro. Assim, se já era convicção plena, há vários anos, que o sistema de previdência incorpora, atualmente, uma profunda iniquidade geracional, com taxas de substituição na fixação de pensões permanentemente em pique;
estas projeções com as disrupções provocadas pela revolução 4.0. tendem
a ser ainda mais postas em causa, pois não incorporam o impacto que as
alterações no mundo do trabalho e a circulação de mão de obra
qualificada vão ter no apuramento de receitas. Mas não só: o sistema
atual não cobre as expectativas do novo trabalhador, que terá de se
reinventar várias vezes ao longo da vida, gerir as suas carreiras e o
momento da sua reforma de um modo totalmente distinto, pelas
características da demografia, o aumento da esperança de vida, a
mobilidade geográfica, a libertação do trabalho por contrato para uma
produção mais independente, entre outros pressupostos dos novos tempos
que não são compreendidos pelo sistema político que herdámos do passado.
E
se a caducidade da previdência é um bom exemplo da incapacidade dos
Estados Modernos para responder aos desafios emergentes, não faltam, em
todas as áreas, expressões concretas que nos mostram como somos hoje
convidados a pensar o presente e o futuro em alinhamento com as regras
dos novos tempos e das disrupções em curso. Continuamos a discutir
migrações e migrantes, quando já seria tempo de aprofundar estatutos
híbridos de cidadania global, com reflexos no modo como permitimos a
mobilidade e financiamos educação, saúde, habitação, previdência, ou
organizamos o trabalho. Continuamos a projetar as cidades e a
mobilidade, esquecendo que a digitalização irá alterar muito rápida e
profundamente a noção de espaço e tempo. Fingimos não perceber que as
moedas estaduais são cada vez mais apenas meio de troca e cada vez
menos, reserva de valor, enquanto acumulamos défices e dívida em Estados
que, a qualquer momento, e num ápice, poderão ser abandonados pelos
seus cidadãos mais válidos e produtivos, que tenderão a preferir zonas
de atração mais competitivas, para si e para os seus. Enquanto
comunidade política, somos incapazes de incorporar os processos digitais
no quotidiano da resposta pública, desperdiçando recursos em atividades
ineficientes, ao mesmo tempo que respondemos com enorme fragilidade a
problemas como o envelhecimento, a sustentabilidade ambiental, o acesso à
saúde ou habitação e às competências que dão autonomia e sustento, ou à
justiça em tempo célere. Não estamos a pensar, minimamente, como
distribuir os benefícios das novas disrupções e mitigar os impactos
negativos que existem, sempre que há mudanças abruptas. Pior,
continuamos a ignorar a realidade, em vez de olhar em frente, conduzimos
com os olhos postos em permanência no retrovisor.
Os
momentos de disrupção patrocinam inúmeras oportunidades e permitem
projetar bem-estar a quem estiver atento aos sinais, adaptando-se à
mudança. Mais, é nos períodos de disrupção e crise que se definem as
regras e os valores do ciclo posterior. Por isso necessitamos –
simplificando – de um novo contrato social. Que preveja, nas suas
cláusulas, os novos direitos e obrigações, e renove a esperança.
À
semelhança do que assistimos com a afirmação da modernidade, que rompeu
com a pré-modernidade, o novo contrato social terá, necessariamente, de
se distanciar de muitos pressupostos que, tendo sido válidos durante
dois séculos, são incapazes de se projetar num mundo integrado,
globalizado e digital. Teremos ainda de nos libertar de inúmeras amarras
ideológicas que nos impedem de compreender um presente e um futuro que,
na sua emergência, se apresentam sem âncoras ou referências no passado,
por serem inovações e não apenas evoluções.
Não
faltará quem goste de se anestesiar – e adormecer consigo a sociedade –
na irrelevância. Nem os que, na sua ignorância, se deslumbram com o
passado, encontrando aí uma ilusão de modernidade. Agora, mais do que
partidos de direita ou de esquerda, de bastiões defensores da pureza
ideológica, da recuperação pífia das grandes bandeiras caducas dos anos
60 e 70, ou de reedições de políticas públicas do passado, urge
encontrar respostas para os desafios dos tempos. Sem elas, continuaremos
cada vez mais pobres, mais envelhecidos, e perdidos na desesperança.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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