Vinícius Müller para o Estado da Arte:
Há
um tipo de dúvida que nos remete a um modo algo simplório de
entendermos a própria História: se existe algum tipo de relação entre
causa e consequência, será possível identificar qual o ponto original
que desencadeou tal relação? Em outras palavras, será possível achar o
momento, a decisão ou o evento que mudou a direção da trajetória
histórica e promoveu uma consequência inesperada?
A
resposta, por ser muito difícil, acaba por possibilitar um sem número
de oportunismos, mesmo que alguns sejam involuntários. Isso porque a
inexatidão de qualquer resposta precipita que cada um, independentemente
das intenções, identifique uma origem diferente, um evento único, uma
ação reveladora. Assim, não é incomum que, para militantes desavisados e
até experimentados intelectuais, a polarização que nos embrutece tenha
começado em 2014.
Não
faz muito tempo que, em uma conversa com um desses intelectuais, ouvi
que duvidar de sua versão de que tudo começou quando o candidato
derrotado à presidência, Aécio Neves, questionou os resultados
eleitorais, era possibilitar que buscássemos as origens da doença que
nos acomete na Grécia Antiga. Além do oportunismo, a resposta revelou
certo cinismo. Afinal, ao desqualificar minha dúvida desse modo,
insinuou que, se não concordo com sua tese, qualquer coisa vale. E,
portanto, nenhuma está correta.
Minha
resposta foi que, ao contrário dos contemporâneos de Péricles ou
Platão, os atores e atrizes responsáveis pela origem de alguns de nossos
problemas contemporâneos ainda estavam vivos e mantinham suas
lideranças e influências. E eles não eram os historicamente menores
Aécio Neves e Dilma Rousseff. Ao contrário, que o triste episódio
envolvendo o medíocre neto de Tancredo era menos importante e
determinante do que outras ‘bravatas’ feitas nas décadas anteriores por
lideranças muito mais influentes do que o ex-senador por Minas Gerais ou
pela ex-presidente Rousseff.
O
curioso e revelador foi que, minutos depois, o mesmo interlocutor
demonstrou a abrangência de seu cuidado histórico ao associar o atual
governo de Bolsonaro à ‘mesma e velha elite que está no poder há 500
anos’. Ou seja, como se houvesse um hiato entre o longo prazo
caracterizado pela ‘elite que sempre esteve no poder’ e o curto prazo,
que começou com o pedido de revisão eleitoral feito pelo candidato
derrotado em 2014. Vale dizer que não há muita diferença entre falar que
‘desde a Grécia Antiga’ ou ‘desde 1500’. A verdadeira diferença é que
se fosse dito por um estudante seria apenas reflexo de sua juventude.
Dito por um intelectual é reflexo de seu oportunismo.
Esta
conversa me fez lembrar de outra passagem um pouco anterior e que me
foi reveladora sobre os resultados mais amplos que ocorrem quando atores
políticos relevantes adotam comportamentos medíocres. Lembro-me, como
se fosse ontem, de meu pai confessando sua ansiedade para exercitar seu
voto na eleição presidencial de 1989. Dizia ele que, como era criança na
eleição de Jânio Quadros em 1960, nunca havia votado na escolha do
chefe máximo do país. Imagino que com isso ele tentava não só me
destacar o momento que vivíamos, mas também a grandeza histórica daquela
eleição.
Certamente
o resultado foi uma decepção. A sociedade brasileira, em posse de seu
direito, escolheu a mediocridade em 1989. Porém, o que meu pai não
imaginava é que no final de 1992, teríamos a oportunidade de nos redimir
da escolha medíocre que fizéramos três anos antes. E, em certa medida,
nos redimimos.
O impeachment de Collor |
Contudo,
alguns não embarcaram nesta direção e, talvez pelo cálculo político
que, embora justo e necessário, esconde em alguns momentos a
mediocridade daqueles que se arvoram em salvadores da pátria, optaram
por cometer o mesmo equívoco que o meu interlocutor: justificar sua
posição a partir de algum evento menor, mas que lhes é favorável; ou por
alguma generalização como ‘nunca dantes na história desse país’.
A
partir daí, uma sucessão de equívocos. Não em relação aos cálculos e
táticas eleitorais. Esses foram certamente vitoriosos. Mas, sim, em
relação à estratégia, mais ampla, sobre os rumos do país em seus
desafios estruturais. O impedimento de Collor era, em dimensão mais
pragmática, o verdadeiro momento de reorganização rumo ao século XXI. A
situação internacional se transformava radicalmente, a decepção de 1985 e
a euforia da Constituição de 1988 haviam sido superadas. E o custo de
um aventureiro na presidência do país já estava absorvido. Mesmo assim, a
mediocridade de alguns, apegados aos cálculos eleitorais, se
sobressaiu.
Desta
forma, muito mais do que os eventos da última década, o que determinou a
polarização que nos empurra para o abismo foi a radical escolha por uma
tática marcada pela oscilação entre o genérico e ‘sou contra esta elite
que está no poder há 500 anos’ e o justo, mas específico e oportunista,
cálculo eleitoral.
É
esta mediocridade que nos espera em 2022. Ela também é responsável pela
ascensão de seus filhos e filhas, como Aécio, Dilma e Bolsonaro.
Contudo eles são operadores desta mediocridade. Em uma analogia infeliz,
eles são os usuários. Os traficantes desta mediocridade, que ainda
estão vivos e influentes, vêm de antes. Se for para escolher entre o
genérico e juvenil ‘nunca dantes na história do país’ e o jornalístico e
oportunista ‘a polarização começou em 2014’, fico com o geracional
médio prazo, cuja origem é dezembro de 1992. Ali começou a polarização
medíocre que nos afunda.
Vinícius Müller é doutor em História Econômica pela USP e professor do Insper.
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