Dois livros recentes alertam para a origem do crescimento de tribalismos rivais nas democracias ocidentais: o abandono da, ou a simples ignorância sobre, a nobre ideia de Ocidente. Artigo do professor João Carlos Espada para a Observador:
1
Receio ter de confessar um tédio intelectual crescente perante a
decrescente qualidade intelectual dos debates políticos que tendem a
dominar a nossa actualidade noticiosa. Polidamente, tenho tentado
resistir a mencionar a aridez (da ausência) do debate político nacional
(para além das acusações mútuas sempre muito zangadas). Mas dificilmente
podem ser ignorados os sinais tribalistas que recorrentemente nos
chegam de outros países considerados “avançados” — como a América ou a
França.
2
No caso da América, tínhamos assistido a uma caricata guerra tribal
entre um radicalismo esquerdista “woke” e um radicalismo “trumpista”,
alegadamente (e muito duvidosamente) conservador.
A
vitória eleitoral do centrista Joe Biden parecia anunciar a derrota dos
tribalismos rivais. Não é seguro, no entanto, que o centrista
Presidente Biden esteja a conseguir controlar a (por ele derrotada) ala
“woke” do seu partido. E, no campo republicano, os recentes
desenvolvimentos não são melhores (para dizer o mínimo).
Na
Câmara dos Representantes, a bancada republicana acaba de substituir na
sua liderança executiva Liz Cheney — uma severa crítica de Trump e
consagrada conservadora na tradição de Ronald Reagan — por uma obediente
de Trump, Elise Stefanik, todavia com um registo de votações à esquerda
de Liz Cheney.
Como
escreveu o (conservador-liberal) Telegraph de Londres (onde Churchill
costumava escrever), aquela decisão dos republicanos não faz qualquer
sentido intelectual — é apenas uma expressão de obediência tribal a um
líder tribal. Talvez esta severa expressão tribal — acrescentou o
conservador-liberal Telegraph — possa ter marcado o renascimento de uma
consistente oposição conservadora-liberal no Partido Republicano, contra
o errático sr. Trump, de muito duvidosas tradições conservadoras.
3 Falemos
agora de França, uma referência maior das nossas elites políticas
lusitanas, da esquerda e da direita, nos séculos mais recentes — sobre
cuja cultura política lamento ter de confessar o meu tranquilo e
profundo cepticismo.
Leio
nas notícias que houve recentemente em França duas cartas abertas
subscritas por militares —alguns na reserva, outros não. O tema dessas
cartas não residiu em assuntos relativos às Forças Armadas — o que seria
aceitável — mas em magnos assuntos políticos nacionais. Dizem eles que
existe um perigo de guerra civil em França e que as Forças Armadas
defenderão a “sobrevivência do nosso país”.
Lamento
ter de perguntar: isto é acerca de quê? Simplesmente parece uma
declaração militar numa das repúblicas das bananas inesquecivelmente
descritas nos livros de Tintin (onde pontuava o famoso general Tapioca,
designação que em tempos apliquei ao sr. Trump). Ostensivamente, a
primeira das duas cartas militares foi publicada no dia 21 de Abril, dia
do 60º aniversário do golpe de estado falhado contra o patriota General
Charles de Gaulle, por causa do seu apoio à independência da Argélia.
Lamento
ter de dizer: isto é simplesmente patético e simplesmente
terceiro-mundista. Parece apenas mais uma triste expressão daquilo que
Alexis de Tocqueville designava, na sua França Natal, por “eterno
conflito entre o Antigo Regime e a Revolução, entre a opressão e o
abuso”.
4
Dois livros recentes alertam para a origem do crescimento destes
tribalismos rivais, da direita e da esquerda, nas democracias liberais: o
abandono da, ou a simples ignorância sobre, a nobre ideia de Ocidente.
Michael
Kimmage, professor na Catholic University of America, escreveu The
Abandonment of the West: The history of an idea in American foreign
policy (Basic Books, 2020). Niall Ferguson, da Hoover Institution na
Universidade de Stanford, acaba de publicar Doom: The Politics of
Catastrophe (Penguin Books, 2021). Um artigo de Ferguson — intitulado
“The China Model: Why is the West imitating Beijing?” — fez aliás em 8
de Maio a capa da Spectator de Londres.
Ambos
condenam o crescimento dos tribalismos rivais nas nossas democracias. E
ambos associam este fenómeno ao declínio, ou esquecimento, ou pura
ignorância sobre a distintiva cultura política pluralista ocidental.
Voltarei a este tema.
Postscriptum:
Homenagens muito merecidas a Jorge Borges de Macedo e José Fernandes
Fafe. Decorreu na passada quinta-feira, na Academia das Ciências de
Lisboa, uma tocante homenagem a Jorge Borges de Macedo (1921-1996),
assinalando o centenário do seu nascimento. No dia seguinte,
sexta-feira, na Fundação Mário Soares e Maria Barroso, foi prestada
também sentida homenagem a José Fernandes Fafe (1927-2017), por ocasião
da apresentação da sua biografia, escrita por seu filho José Paulo Fafe.
Tive o privilégio de conhecer e muito aprender com Jorge Borges de
Macedo e José Fernandes Fafe — através dos seus escritos e de longas
conversas, sempre muito estimulantes e inspiradoras. Recordo com
particular carinho a mesa-redonda que moderei entre ambos, creio que em
1990, sobre o livro de José Fernandes Fafe, Nação, fim ou metamorfose?
(Imprensa Nacional, 1990). Foi uma inesquecível aula magistral sobre a
importância do Estado-nação e do sentimento patriótico — bem como sobre o
papel crucial de ambos como base do multilateralismo (por contraste com
o chamado “globalismo”) e da civilização ocidental.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

Nenhum comentário:
Postar um comentário