Além de alimentar algoritmos perversos, as estrelinhas nos transformam em juízes implacáveis da competência alheia – sem espaço para o perdão. A crônica de Paulo Polzonoff para a Gazeta do Povo:
Hoje
em dia tudo se avalia. Você pede uma pizza e cinco minutos depois
recebe o e-mail do aplicativo implorando para que se dê estrelinhas para
o atendimento, a embalagem, o sabor e, se calhar, até a roupa do
entregador. Você vai à farmácia comprar uma simples aspirina e lá está a
maquininha pedindo e às vezes mandando que você avalie o atendimento
com as tais estrelinhas – mesmo que você não tenha sido atendido por
ninguém em sua sofrida busca por um remédio que aliviasse a dor de
cabeça.
As
estrelas governam nossa vida contemporânea. E não, não estou falando de
constelações. Aos poucos, essas estrelas vão alimentando um monstrengo
chamado “algoritmo” e acabam por determinar todas as nossas escolhas. De
repente você percebe que deixou de comprar e ler aquele livro – aquele!
– porque a ele falta a chancela das estrelas. Ou deixou de assistir a
um filme ou de comer num restaurante. Percebe até mesmo que deixou de
ler este texto que agora escrevo porque, bom, porque meus textos
anteriores não foram aprovados pela grande divindade das Cinco Estrelas.
Nos
últimos tempos, contudo, aprendi que as avaliações quase sempre revelam
muito mais sobre o estrelador do que sobre o estrelado. Afinal, como
justificar essa compulsão por avaliar tudo e, assim, tornar-se um
pequeno algoz das reputações alheias? Como não perceber o prazer
perverso contido na estrelinha solitária que parece transformar o
motorista do Uber num barbeiro, o pizzaiolo num porco e o escritor num
fracassado?
Que mundo melhor é esse?
Digamos,
por exemplo, que você pegou um Uber caindo aos pedaços, com um
motorista que não sabe ler placas de trânsito direito (avançou na
preferencial sem nem olhar!) e com o ar-condicionado supostamente
quebrado sob um sol de quarenta graus (vinte e cinco, para os
curitibanos). Você entra no carro e já dá aquela bufada de ódio. E, a
cada freada do motorista, sente crescer dentro de você aquela raivinha
de criança mimada quando as coisas não saem exatamente do jeito que ela
quer. Finalmente o carro chega ao destino e, sem hesitar, você vai logo
avaliando mal o motorista. Só dá uma estrelinha porque é impossível dar
estrelas negativas.
Na
improvável hipótese de alguém perguntar, você dirá que deu uma estrela
ao motorista (ou, como querem os novinhos, à experiência) para que os
problemas não se repitam. Isto é, para transformar o mundo num lugar
melhor, sem motoristas perdidos e com ares-condicionados que funcionam.
Da mesma forma, você avalia mal uma pizzaria para que outras pessoas não
tenham a mesma intoxicação alimentar que você e avalia mal um livro
para que outras pessoas não percam o mesmo tempo que você perdeu lendo
aquela porcaria. Em resumo, você é apenas um abnegado juiz do cotidiano,
compartilhando experiências ruins – e bem de vez em quando algumas boas
– a fim de transformar vidas. Ou algum blá-blá-blá do gênero.
Mas
me deixe plantar a semente da dúvida nessa sua cabecinha tão cheia de
virtudes. Já parou para pensar que talvez o motorista do Uber seja um...
jornalista recém-desempregado que nunca dirigiu profissionalmente e que
não teve dinheiro para trocar o gás do ar-condicionado na semana
passada? (Vai ver ele nem sabe que precisa trocar o gás do ar). Ou que a
intoxicação alimentar talvez tenha sido causada pela macarronada que
você comeu no restaurante a quilo na hora do almoço, e não pela pizza
que entregaram com cinco minutos de atraso? Ou ainda que o livro que
você o-di-ou simplesmente o pegou num dia ruim?
No
primeiro caso, eu lhe daria uma estrela por sua falta de compreensão.
No segundo, uma estrela por suas preferências alimentares suspeitas. No
terceiro, uma estrela por sua incapacidade intelectual de passar por
cima dos problemas cotidianos a fim de mergulhar na experiência estética
proposta pelo autor. Ou coisa assim.
Fico
me perguntando que “mundo melhor” é esse que as pessoas imaginam estar
construindo dando uma ou cinco estrelas para tudo o que fazem. Não, o
motorista do Uber não vai aprender a se localizar bem na cidade de uma
hora para a outra (e talvez não tenha dinheiro para consertar o
ar-condicionado). Não, o pizzaiolo não vai se lembrar de lavar a mão
depois de ir ao banheiro só porque você disse ter sofrido uma
intoxicação alimentar. E não, o escritor não lhe pedirá desculpas só
porque você não gostou das mal traçadas lá dele.
Patente pendente
Até
por isso nos últimos tempos tenho usado um sistema de avaliação reverso
(patente pendente). Se a experiência é excelente, isto é, se o Uber me
trouxe em casa são, salvo e devidamente refrigerado, se a pizza não me
causou uma diarreia e se cheguei ao fim do livro plenamente satisfeito,
não hesito em avaliar com uma estrelinha esfarrapada, daquelas que nem
brilham direito, se calhar até faltando uma perninha. Afinal, foram
experiências que não me ensinaram nada, que cumpriram seu propósito sem
me transformar.
Neste
meu sistema reverso merecem cinco estrelas somente experiências
traumáticas (ou transformadoras, dependendo do dia): sobrevivi não só ao
ar-condicionado defeituoso do Uber como também a um capotamento. Fui ao
hospital tomar soro depois de comer uma pizza estragada e me apaixonei
pela enfermeira. Ou li um livro tão, tão, tão mal escrito que ao final
dele só pude concluir uma coisa: escrevo melhor do que esse sujeito aí.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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