Sábios têm o talento de tornar herméticas as disposições feitas para uso
do cidadão comum. Artigo de Ives Gandra da Silva Martins, publicado
pelo Estadão:
Este artigo eu escrevo em memória de meu professor de Direito
Processual Penal, Joaquim Canuto Mendes de Almeida. Em suas aulas
costumava dizer que os juristas muitas vezes dificultam a compreensão do
Direito. O Direito é uma ciência simples que os mestres que o ensinam
têm o dom de complicar. Nada mais é do que as regras de convivência, que
o povo deve entender para cumpri-las. Quando, entretanto, ensinadas
pelos sábios, nem o povo nem os próprios sábios entendem como
obedecer-lhes corretamente. Essa é a razão por que os tribunais
superiores e constitucionais existem e seus ínclitos magistrados
divergem tanto. Nomeados para esclarecer os “administrados” - este é o
termo jurídico aplicável aos cidadãos -, normalmente os deixam mais
confusos.
Lembro-me de um seu exemplo, quando afirmava que a melhor definição
de prisão preventiva ele ouvira de um sambista gaúcho, cujo samba
começava: “Nascimento, segura o homem, que este homem quer fugir”.
Dizia: “Aí está a razão de ser da prisão preventiva, que vocês terão
dificuldade de compreender depois que lerem os tratadistas brasileiros e
estrangeiros. O bandido tem de ser preso antes para que não fuja. Todo o
resto, como destruição de documentos, obstrução de Justiça, são criação
dos juristas para exercício do saber e do poder”. Poderia eu
acrescentar: para trazer insegurança jurídica, pois qualquer suspeito,
alavancado, misteriosamente, pela imprensa para justificar o
encarceramento sem aviso prévio, sofre a pena. As prisões provisórias e
preventivas estão hoje banalizadas, como na era dos tribunais populares
da Revolução Francesa, banalizada estava a utilização da guilhotina, que
se tornara um passatempo popular.
Lembro-me do velho mestre quando afirmava: “O Código de Processo
Penal é instrumento válido apenas nas democracias, pois existe para
proteger o acusado, e não a sociedade”. Ensinava que, se o povo fizesse
justiça com as próprias mãos, os linchamentos públicos seriam diários.
Quando lembro, 62 anos depois de suas aulas, após ter eu exercido
durante todo esse período o direito de defesa como advogado provinciano,
adaptaria às aulas do professor Canuto - ele se intitulava neto da
praça, pois seu avô era João Mendes, que dera o nome ao logradouro
central - as lições de Bastiat em seu célebre opúsculo A Lei. Escrevia
Bastiat, na primeira metade do século 19, que a função da lei não é
fazer justiça, mas sim não fazer injustiça.
Parafraseando o jornalista e economista francês, diria que a função
do Poder Judiciário é não fazer justiça, mas sim não fazer injustiça. Se
cabe ao Ministério Público sempre na dúvida acusar, o Poder Judiciário
não deve tornar-se um órgão homologatório do parquet. Deve, isso sim,
não permitir que a injustiça se faça, devendo o advogado, no mais
legítimo direito das democracias, que é o de defesa, lutar para que a
injustiça não se faça. Não sem razão, a lição da velha Roma é atual,
quando se dizia que o máximo da justiça é o máximo da injustiça.
Por essa razão, numa sociedade o Judiciário é um Poder técnico, que
não representa o povo, mas a lei; e não tem vocação política, pois esta
cabe aos representantes do povo.
Assim é que, a Constituição brasileira tornou os Poderes harmônicos e
independentes (artigo 2.°), com atribuições bem definidas, nos artigos
44 a 69 (Poder Legislativo), 70 a 75 (Tribunal de Contas), 76 a 91
(Poder Executivo), 92 a 126 (Poder Judiciário). Acrescentou àquelas
atribuições as funções essenciais à administração da justiça, ou seja,
Ministério Público (127 a 132) e Advocacia (133 a 135). Se o Judiciário
deixa de ser um Poder técnico para ser um Poder político, ingressando na
luta ideológica, a democracia corre riscos, visto que, sendo o Poder
que pode errar por último, imporia uma ditadura da magistratura.
Mestre Canuto costumava dizer que, normalmente, o que está escrito na
lei é o que deve ser seguido, e não as teorias dos sábios que encontram
mil e uma interpretações atrás de cada palavra colocada na lei, tendo o
talento de tornar herméticas e fechadas só para a compreensão dos
iluminados as mais singelas disposições feitas para serem vividas e
entendidas pelo cidadão comum.
Creio que, se vivo fosse, o professor Canuto, ao ver os
consequencialistas, que flexibilizam de tal forma o que está na Lei
Suprema a ponto de admitirem que o Poder Judiciário seja um constituinte
derivado, fazendo normas constitucionais e infraconstitucionais, nas
pretendidas omissões legislativas - o artigo 103, § 2.º, da Constituição
federal proíbe tal conduta -, ou promovendo atos da competência do
Executivo, quando tais atos não lhe agradam, certamente se sentiria um
monge trapista em suas considerações, pois à época em que ironizava o
hermetismo dos juristas, dizendo que atrapalhavam, os Poderes eram
realmente harmônicos e independentes, respeitando uns aos outros suas
atribuições.
Quantas saudades tenho de meu querido professor!
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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