É repulsivo pensar que não só Alexei Navalny foi contaminado com
Novichok, agente químico que só o Estado tem, como tudo pode ficar por
isso mesmo. Vilma Gryzinski:
“Nós não esperávamos que eles sobrevivessem”.
Esta frase dita pelo médico inglês Stephen Jukes é a maior esperança
de que o opositor russo Alexei Navalny consiga escapar do envenenamento
por Novichok, substância desenvolvida como arma química ainda na época
da União Soviética, agora confirmada como causadora do colapso que ele
sofreu depois de tomar um chá no bar do aeroporto e embarcar num avião
na Sibéria.
O intensivista estava na equipe do hospital que atendeu Sergei
Skripal e sua filha Yulia, ambos envenenados em março de 2018 com o
agente químico pulverizado na maçaneta da porta onde o ex-espião morava
discretamente, na pequena cidade de Salisbury.
A equipe médica achou inicialmente que os dois, encontrados
inconscientes num banco de praça, tinham sofrido uma overdose de
opiáceos.
Colocados em coma induzido e entubados, pai e filha conseguiram,
incrivelmente, sobreviver. Quando melhoraram um pouco, foram submetidos a
traqueostomia.
O tratamento clássico é com atropina, o mesmo fármaco usado nas
intoxicações por pesticidas que matam insetos em plantações da mesma
forma que os inibidores de colinasterase, interferindo na comunicação
dos músculos com os nervos. Nos humanos, a morte horrível, por paralisia
dos pulmões dura de 20 a 30 minutos para chegar.
Além do tratamento intensivo dado os Skripal, os médicos locais
também consultaram especialistas de Porton Down, o centro nacional de
esquisas de armas químicas e biológicas que, por incrível coincidência,
funciona perto de Salisbury desde a a Primeira Guerra Mundial.
Todos os trajetos dos dois agentes russos enviados para envenenar o
ex-espião foram meticulosamente reproduzidos. Suas verdadeiras
identidades foram reveladas.
Em represália, Inglaterra e Estados Unidos expulsaram agentes dos
serviços secretos russos lotados como diplomatas – uma espécie de
tapinha na mão.
Se Putin fez isso num país estrangeiro, o que poderia ser tomado como
um ato de guerra, imaginem a liberdade de envenenar “seus” próprios
cidadãos em território russo.
O cinismo estarrecedor, uma conhecida arma de Putin e asseclas, com
que o caso de Alexei Navalny impressiona até pelos padrões russos.
O “médico de Putin”, Igor Molchanov, insinuou numa rede social outros motivos para o colapso de Navalny.
“Um jovem político que quer aumentar sua capacidade de resistência e
de memória, toma uma grande dose de pílulas, depois não come, bebe
demais e tem uma overdose. Não seria isso?”, escreveu, cinicamente.
Os médicos que o atenderam em Omsk, antes de ser transferido para a
Alemanha, também falaram que nenhum traço de veneno foi encontrado, só
de álcool e cafeína.
Detalhe: Navalny não bebe.
Dimitri Peskok, que mais do que porta-voz é um dos principais
operadores de Putin, disse que a Rússia “está pronta e interessada em
total cooperação e troca de informações sobre o tema”.
Tradução: danem-se.
Peskov tem uma bronca pessoal com Navalny. Quando se casou, em 2015,
em Sochi, usou na festa um relógio Richard Mille no valor de 530 mil
dólares.
É um modelo em que o mecanismo em forma de caveira fica exposto, tão raro que só 30 modelos são fabricados por ano.
Quem descobriu foi Alexei Navalny, Além de comícios e mobilizações, o
oposicionista também tem uma rede de fiscalização de atos de corrupcão
dos poderosos do regime. E é aí que a coisa pega.
“Como o secretário de Imprensa do presidente tem um relógio que custa
quatro vezes mais seu salário anual?”, perguntou em seu blog.
Peskov acabou alegando que tinha sido um presente da mulher, Tatiana Navka, patinadora artística no gelo.
Navalny não deu sossego. Usando mecanismos de geolocalização e muita
paciência, reproduziu os trajetos da lua-de-mel de Peskov num iate de
alto luxo, também totalmente incompatível com sua renda.
Navalny está há bastante tempo no papel de dissidente mais importante
da Rússia e, apesar do incômodo, não tem condições de provocar abalos
permanentes na estrutura de poder.
Tão seguro está Putin que passou recentemente uma emenda constitucional que lhe garante se perpetuar até 2036.
Não é tolice desgastar-se mandando assassinar seu maior opositor?
Putin não age por impulso e tudo o que faz tem um planejamento estratégico.
É possível que tenha achado que a janela de oportunidade era boa: a
Europa Ocidental envolvida com a crise do coronavírus, Donald Trump
concentrado na luta pela reeleição, a Alemanha magoada com a
transferência de tropas americanas (por sua própria culpa, pois não quer
bancar o custo) e amarrada pelo acordo de fornecimento de gás russo que
a salva do uso antiecológico do carvão.
Ou simplesmente achou que valia a pena correr o risco e depois seguir a política de negar, negar, negar e negar mais um pouco.
“Tudo o que o Kremlin diz que não fez, como se fosse um ladrão pego
em flagrante, não significa nada”, resumiu Vil Mirzaianov, o “pai” do
Novichok, quando Skripal foi envenenado.
O químico de 83 anos, hoje vivendo em Princeton, teve que se exilar
nos Estados Unidos depois que entrou na mira dos serviços russo.
Seu crime foi escrever um artigo, no rápido período de abertura da
era pós-soviética, apontando os estoques secretos do agente A-234,
criado especificamente para não aparecer nas inspeções da convenção de
destruição de armas químicas.
O nome Novichok foi dado justamente porque ele era um
“recém-chegado”, um novo elemento no arsenal de seus “parentes”, sarin,
tabun e Vx.
O Vx foi utilizado por duas prostitutas contratadas por agentes
norte-coreanos para matar o meio irmão de Kim Jong-un no aeroporto de
Kuala Lumpur. Uma das mulheres apenas passou um lenço de papel no rosto
dele.
O Novishok é dez vezes mais potente, mas mata da mesma forma: por
ingestão, respiração ou absorção pela pele. Tem que ser manipulado por
pessoas treinadas e pode vir sob a forma de dois agentes separados, que
se tornam letais quando juntados na hora.
Incrivelmente, como nos filmes com guinadas que desafiam a
credulidade, as duas vítimas mais conhecidas do Novichok, Sergei Skripal
e Alesei Navalny, sobreviveram.
A única morte foi de Dawn Sturgess, em Salisbury. Seu companheiro
achou no lixo um frasco de perfume Premier Jour, de Nina Ricci, e a
presenteou.
Dawn passou o perfume nos pulsos, no gesto comum mas mulheres. Já enfraquecida pelo alcoolismo, não resistiu.
O perfume, incluindo o frasco e a caixa, era um “presente” de Putin.

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