Talvez o coma da Liberdade se deva a um sintoma mais singelo e não menos
mortal: a crise das democracias é, antes de mais, uma crise dos
democratas. Sebastião Bugalho para o Observador:
Se o Ocidente ainda não está morto, há de morrer a rir. No caótico
cenário que a pandemia trouxe e que caracterizaria, de qualquer modo, o
atual momento de transição global, os equilíbrios de poder abanam, as
instituições sofrem, as lideranças escasseiam e os povos duvidam. Apesar
de tudo isso, com ou sem vírus, a gradual falência da ordem
internacional e os movimentos de mudança naquilo que antes a suportava
vêm sendo agradavelmente compensados com uma boa dose de humor
igualmente globalizado.
Esta semana, um homem disfarçado de panda foi detido pelas
autoridades bielorrussas, que tomaram a indumentária como forma de
protesto contra o regime de Lukashenko. A ex-secretária da imprensa de
Donald Trump, Sarah Huckabee Sanders, descreve nas suas memórias em
breve editadas que o Presidente celebrou o facto de Kim Jung Un se “ter
feito a ela”. O presidente de uma junta de freguesia no sul de Praga
enviou um e-mail ao ministério dos Negócios Estrangeiros chinês,
exigindo um pedido de desculpas formal devido às ameaças que Pequim
lançou ao presidente do senado da República Checa; investido de uma
patriótica bonomia, o autarca tornou a missiva imediatamente pública, na
qual se refere aos governantes chineses como “uns palhaços sem
maneiras” – algo ultimamente próximo da verdade. A China, não desprovida
ela própria de alguma capacidade de auto-ironia, veio por sua vez
condenar a Índia e os Estados Unidos por banirem apps eletrónicas de
origem chinesa – sendo que Facebook, Twitter, Whatsapp, Google, Spotify,
Wikipedia, Yahoo, Youtube, Snapchat, Instagram e Pinterest são todos de
acesso proibido no território chinês. Como cereja no topo do bolo,
Vladislav Surkov, um ex conselheiro e ideólogo do Kremlin de Putin,
publicou um poema cujos versos não resisto a citar:
“Estou sozinho outra vez
Deram-me liberdade
Quem precisa de cocaína
Quando há este ar?”
A semana internacional teve, todavia, um lado trágico que a comédia
não conseguiu anestesiar. O dr. Costa, habitualmente tão zeloso das
modas mediáticas em vigor, confirmou a sua recém-formada amizade com
Viktor Orbán e recusou tomar a Hungria como uma potencial autocracia no
seio da União Europeia, em entrevista à revista do Expresso. O governo
alemão, sempre vocalmente “preocupado” com as questões humanitárias em
Xinjiang, deixou claro que os laços comerciais entre Berlim e Pequim não
serão afetados por matérias de direitos humanos. Angela Merkel proferiu
um severo discurso sobre a tentativa de assassinato de Alexei Navalny,
líder da oposição russa envenenado com o mesmo químico que vitimou
Sergei Skripal em 2018, mas remeteu a eventual resposta ao crime para o
governo russo – o que, no capítulo das auto-ironias, também merece
prémio. Quanto a consequências concretas, nomeadamente no projeto de
gasoduto Nord Stream 2, que ligará energeticamente a Rússia à Alemanha
sobre o Báltico, nem uma palavra da chanceler.
Se a isto juntarmos o caminho errático, essencialmente em palestras e
artigos de opinião, que o alto-representante para a política externa da
UE, Josep Borrell, vem percorrendo quanto à China, rapidamente
entendemos como as democracias jazem indefesas e insuficientemente
escudadas na efemeridade de discursos e conferências.
Como arma de combate, o pragmatismo burocrático não chega. O debate
sobre a crise democrática no mundo é recorrentemente feito com
argumentos em torno da desigualdade que a globalização não resolveu (e
até agravou), com remoques ideológicos contra o capitalismo e/ou contra
os populistas – e estamos já todos acostumados a adivinhar o argumento
que se segue –, mas talvez o coma da Liberdade se deva a um sintoma mais
singelo e não menos mortal: a crise das democracias é, antes de mais,
uma crise dos democratas. E, como escrevia António Nogueira Leite há
dias, estes correm o sério risco de perder por falta de comparência. Se
aí chegarmos, meu caro leitor, não haverá riso que nos valha.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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