Conhecemos o modelo venezuelano da “democracia bolivariana” que Boaventura Sousa Santos tanto defende: um país estatizado, minado pela fome e do qual quase um terço da população fugiu. Artigo de Jorge Barreto Xavier, publicado pelo Observador:
1 Em
1992, enquanto tenente-coronel do exército, Hugo Chávez liderou, no
país com as maiores jazidas petrolíferas mundiais — a Venezuela — uma
tentativa falhada de golpe de Estado. Como consequência, esteve preso
dois anos, sendo amnistiado. Em 1998, foi eleito Presidente da
Venezuela, contra os partidos tradicionais e com uma agenda de defesa
dos mais desfavorecidos. Em 1999, na sequência de um referendo que
promove e vence, é alterada a ordem constitucional. A Venezuela é
redenominada República Bolivariana da Venezuela, o sistema parlamentar
deixa de ser bicameral e passa a unicameral. Os poderes presidenciais e
executivos são largamente ampliados em detrimento dos parlamentares. Na
sequência da vigência da nova Constituição, e com a convocação de novas
eleições, é reeleito, e o Parlamento aprova poderes reforçados para o
Presidente: pode legislar por decreto. Ocorrem nacionalizações e a
reforma agrária. Em 2002, há uma tentativa de golpe de Estado com o
objetivo de substituir Chávez, provavelmente com apoio americano. Em
2004 ocorre um referendo, reconhecido internacionalmente como
democrático, que garante a sua continuidade no poder. Vence as eleições
presidenciais de 2007, ano em que determina o encerramento da mais
antiga e popular emissora de televisão do país, que o contesta,
substituindo-a por uma estação estatal controlada.
Ao
mesmo tempo, em termos de distribuição de riqueza, Chávez promove
políticas que reduzem a pobreza e melhoram o Índice de Desenvolvimento
Humano da Venezuela.
Hugo
Chávez morre em 2013, ano em que os preços do petróleo – que representa
mais de 90% das exportações venezuelanas — sofrem uma queda forte
(tendência que se torna sistémica nos anos seguintes). É substituído na
presidência pelo vice-presidente, Nicolás Maduro, que, ainda nesse ano, é
eleito Presidente. Em 2015, a oposição vence as eleições parlamentares,
num quadro político, social e económico conturbado.
Para
contornar a oposição, que o procura destituir, em 2017 Maduro convoca
uma Assembleia Constituinte, retirando poderes ao parlamento eleito. Nas
conturbadas eleições presidenciais de 2018 é declarado, pela Comissão
Eleitoral, Presidente eleito. Mas partidos políticos da oposição e
líderes oposicionistas foram impedidos de concorrer. Maduro não foi
reconhecido como vencedor deste ato eleitoral nem pela Organização dos
Estados Americanos nem pela União Europeia.
No
início de 2019, Maduro toma posse, legitimado pelo Supremo Tribunal de
Justiça. E Juan Guaidó, presidente da Assembleia Nacional, é declarado,
pela maioria dos parlamentares da Assembleia Nacional, Presidente em
exercício, sendo reconhecido nesse estatuto por mais de 50 países, entre
os quais Portugal. Em Julho do corrente ano, Nicolas Maduro convoca
eleições para a Assembleia Nacional, para Dezembro próximo.
2
A Venezuela é, atualmente, o país com a maior taxa de inflação do mundo
— 2358% ao ano. De acordo com a Amnistia Internacional, num relatório
sobre o ano de 2019: “A Venezuela continua a passar por uma crise de
direitos humanos sem precedentes. As execuções extrajudiciais, as
detenções arbitrárias, o uso excessivo da força e as mortes ilegais
pelas forças de segurança continuam como parte de uma política de
repressão para silenciar os dissidentes. A crise política e
institucional aprofundou-se nos primeiros meses do ano, resultando no
aumento das tensões entre o Executivo de Nicolás Maduro e o Legislativo
chefiado por Juan Guaidó. O crescente protesto social foi confrontado
com uma ampla gama de violações de direitos humanos e uma intensificação
da política de repressão por parte das autoridades. Os prisioneiros de
consciência enfrentaram processos criminais injustos. A liberdade de
reunião e expressão permaneceu sob constante ameaça. Os defensores dos
direitos humanos foram estigmatizados e enfrentaram cada vez mais
obstáculos para realizar seu trabalho. (…) A interferência na
independência judicial continuou e o isolamento dos fóruns regionais de
direitos humanos deixou as vítimas de violação dos direitos humanos com
poucos caminhos para buscar justiça. As autoridades recusaram-se a
reconhecer a verdadeira escala da emergência humanitária e da
deterioração das condições de vida. A população enfrenta grave escassez
de alimentos, medicamentos, suprimentos médicos, água e eletricidade. No
final de 2019, o total de pessoas que fugiram do país em busca de
proteção internacional chegou a 4,8 milhões”.
De
facto, a estes 4,8 milhões de refugiados, segundo as Nações Unidas,
juntam-se 650 mil venezuelanos à procura de asilo político e 2 milhões
vivendo em outros países americanos sob “outras formas legais de
estadia”.
Também
segundo a Amnistia Internacional, em Fevereiro de 2019, “na cidade de
Santa Elena, fronteira com a Venezuela e o Brasil, a Guarda Nacional
Bolivariana usou de força excessiva contra os indígenas que se dirigiam à
fronteira para receber ajuda humanitária. O OHCHR confirmou que sete
pessoas morreram e 26 ficaram feridas por tiros de forças militares. Na
falta de suprimentos médicos, os feridos foram encaminhados a um
hospital brasileiro.”
3
Boaventura Sousa Santos, um grande admirador de Hugo Chávez e da
“revolução bolivariana”, é diretor emérito do Centro de Estudos Sociais
da Universidade de Coimbra. Recentemente, escreveu um artigo no jornal
Público intitulado “A hora da esquerda: agora ou só daqui a muito
tempo”, sobre a atual situação política em Portugal. Neste artigo,
defende a necessidade de acordo parlamentar entre PS, PCP e BE na
aprovação do Orçamento de Estado de 2021, num momento que corresponderá a
“um novo período de mudança estrutural” (os anteriores terão sido
1986-1996 e 2011-2015, “dominados por forças de direita”).
Voltando
à Venezuela: num artigo de 2017, que se intitula “Em defesa da
Venezuela”, diz Boaventura Sousa Santos: “Estou chocado com a
parcialidade da comunicação social europeia, incluindo a portuguesa,
sobre a crise da Venezuela”. Diz ainda: “A Venezuela vive um dos
momentos mais críticos da sua história. Acompanho crítica e
solidariamente a revolução bolivariana desde o início. As conquistas
sociais das últimas duas décadas são indiscutíveis.”
Num
artigo do início de 2019, intitulado a “Nova Guerra Fria e a
Venezuela”, diz: “Não é difícil concluir que não está em causa a defesa
da democracia venezuelana. O que está em causa é o petróleo da
Venezuela”.
No
fim de 2019, numa carta aberta ao Presidente da Colômbia diz, a
propósito de intervenções do governo colombiano relativas a populações
indígenas: “Não exagero, senhor Presidente, ao dizer que o que vemos na
Colômbia é um etnocídio contra uma parte específica da população”.
4
O que pretendo retirar daqui são factos e conclusões: Boaventura Sousa
Santos critica publicamente a atuação contra os índios na Colômbia, mas
não se lhe ouve uma única palavra sobre o assassinato de índios
praticado por forças governamentais na Venezuela. Critica a comunicação
social europeia e não refere o controlo da comunicação na Venezuela.
Evidencia os ganhos sociais e económicos da população mais desfavorecida
da Venezuela entre 2000 e 2010 e ignora completamente a situação de
fome que se vive desde 2012. Defende a existência de uma democracia na
Venezuela para legitimar as decisões governamentais, mas omite a
repressão policial, as detenções ilegais, o silenciamento dos opositores
do regime. Defende a existência de uma nova Assembleia Constituinte na
Venezuela, mas esquece a legitimidade de uma Assembleia Nacional
democraticamente eleita. Reivindica que os EUA é que estão por trás da
instabilidade na Venezuela e que procuram incentivar ações ilegais de
tomada do poder, mas certamente sabe que Hugo Chávez tentou, em 1992, um
golpe de Estado.
Esta
duplicidade é pouco sustentável num académico e no debate público.
Aliás, como acontece com alguns outros académicos portugueses, sob a
capa universitária Boaventura Sousa Santos afirma com a autoridade da
ciência aquilo que é demagogia. Mostra-nos o mundo com óculos
monofocais. E vem agora, na qualidade de inspirador intelectual da
Esquerda, apelar à sua união em Portugal. Para, diz, promover a
centralidade do Estado, num período pandémico, de transição energética,
dos modelos de mobilidade, na política alimentar.
Conhecemos
o modelo venezuelano da “democracia bolivariana” que tanto defende: um
país estatizado, dependente das exportações do petróleo, minado pela
fome e do qual quase um terço da população fugiu nos últimos seis anos,
num êxodo sem precedentes.
Já conhecemos o filme. Mas há quem insista na sua reiteração, numa negação insustentável da realidade.
Mas,
mais que o Plano Costa Silva — criticável mas pormenorizado — é o Plano
Boaventura — que se resume a uma frase — que nos vai salvar: dêem ao
Estado todo o poder.
É,
como ele diz, “a hora da Esquerda”. Deixem o Estado controlar a
totalidade dos sistemas políticos, económicos e sociais. E deixem as
Esquerdas cuidar do Estado. E tudo se há-de resolver.
Quem não acreditar nisto é, evidentemente, um reacionário. Aqui ou na Venezuela.
Temos de mudar de óculos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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