"Liberdade
é liberdade, não é igualdade, ou equidade, ou justiça, ou cultura, ou
felicidade humana, ou uma consciência tranquila": citando Isaiah Berlin,
em homenagem a Vicente Jorge Silva. Artigo do professor João Carlos
Espada para o Observador:
O
muito estimável debate que tem continuado a decorrer entre nós, a
propósito da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, sugere-me uma
breve visita a um texto clássico da Teoria Política contemporânea sobre
os diferentes entendimentos da liberdade. Refiro-me à célebre palestra
de Isaiah Berlin no All Souls College, em Oxford, em 1958 (quando tomou
posse da muito distinta Chichelle Chair of Social and Political Theory).
O texto continua hoje a ser intensamente discutido, objecto de estudo,
tema de inúmeros livros e dissertações académicas. Chama-se ‘Two
Concepts of Liberty’. Como direi na conclusão, escrevo também este
artigo em homenagem a Vicente Jorge Silva, que nos deixou na semana
passada.
Basicamente,
Isaiah Berlin argumentou que há dois entendimentos de liberdade e que
eles estavam no âmago do principal conflito daquela época (entre as
democracias liberais ocidentais e o comunismo soviético). Isto gerou
alguma surpresa, dado que a percepção na altura era que o conflito
residia entre liberdade e igualdade. Mas Isaiah insistiu que se tratava
de um conflito entre dois conceitos de liberdade.
De
um lado, argumentou ele, estava o conceito liberal clássico de
liberdade como ausência de coerção por terceiros — que ele designou como
‘liberdade negativa’ e que atribuiu a John Locke, Adam Smith, Benjamin
Constant, Tocqueville e John Stuart Mill, entre outros. Basicamente,
significa que um indivíduo será tanto mais livre quanto menor for a
interferência de terceiros na sua esfera de decisão pessoal.
Em
termos políticos, o ideal da liberdade negativa supõe a existência de
um Estado limitado sob o império da lei, que respeita a esfera privada
das decisões pessoais, e cujo principal objectivo é garantir que a
liberdade de uns não interfere nem produz danos na liberdade de outros.
Os lemas geralmente associados a este conceito negativo de liberdade são
‘live and let live’, ou ‘we agree to disagree’, ou ainda ‘mind your own
business’.
Esta
liberdade negativa deixa no entanto muitos problemas por resolver.
Pessoas livres podem cometer muitos disparates na sua vida pessoal.
Pessoas igualmente livres perante a lei podem ter entre si profundas
desigualdades materiais ou económicas. E um Estado pequeno limitado pela
lei abstém-se de legislar sobre muitos domínios que algumas pessoas,
por vezes a maioria, poderiam preferir que fossem objecto de legislação.
Destes
problemas surgiu um outro conceito de liberdade — a que Berlin chamou
liberdade positiva, remetendo-a para Rousseau e Marx, entre outros. A
liberdade é aqui entendida como capacidade para agir autonomamente e
racionalmente — e já não apenas como liberdade de não ser coagido.
(Ficou consagrada a sua distinção entre ‘liberty from’ — liberdade
negativa — e ‘liberty to’ — liberdade positiva).
O
conceito positivo de ‘liberdade para’ tem inúmeras consequências em
várias esferas da vida social. No tema que nos interessa a respeito do
debate sobre a escola, a esfera cultural, o conceito positivo de
‘liberdade para’ tem inesperadas consequências. A liberdade negativa de
‘Live and let live’ foi vista como ‘burguesa’, ‘conservadora’ e
‘hipócrita’. Basicamente, foi dito que, sob a ‘formal liberdade burguesa
da igualdade perante a lei’, as pessoas e as comunidades continuavam
oprimidas por preconceitos, tradições e superstições, designadamente
religiosas. Foi a este respeito que Rousseau escreveu que era preciso
libertar os homens, se preciso fosse, mesmo contra a sua vontade.
Isaiah
Berlin, na tradição de Locke, Tocqueville e Stuart Mill, perguntou: o
que significa libertar as pessoas contra a sua vontade? Libertá-las de
quê? Daquilo em que voluntariamente acreditam, mas que alguns filósofos
consideram retrógrado? Dos modos de vida que consideram confortáveis,
mas que, aos olhos de alguns filósofos, são apenas modos de vida
‘conservadores e obsoletos’?
Isaiah
Berlin observou que existe aqui um mal-entendido. Os nossos
‘libertadores’ chamam liberdade à obrigação de os outros agirem e
pensarem em conformidade com eles. E, às suas próprias crenças
dogmáticas, os nossos ‘libertadores’ chamam ‘autonomia’, ‘razão’ e
‘libertação do preconceito e da tradição’. Karl Popper chamou esta
atitude de ‘racionalismo dogmático’ (por contraste com ‘racionalismo
crítico’) e ‘profetismo oracular’. E Raymond Aron usou a expressão ‘ópio
dos intelectuais’. Disse Aron que ‘eles acreditam que sabem, sem
saberem que acreditam’.
Curiosamente
também, Berlin, Popper e Aron reviam-se na moderada revolução
constitucional pluralista britânica de 1688 — promovida por um ‘bloco
central’ de liberais e conservadores, com o objectivo expresso de
restaurar a Magna Carta de 1215 e a soberania do Parlamento e, por essa
via, ‘tornar desnecessárias futuras revoluções’. Berlin, Popper e Aron
não eram entusiastas da radical revolução francesa de 1789 nem da
contra-revolução reaccionária que se lhe opôs — e a que Tocqueville
chamou a ‘perpétua oscilação entre o abuso e a servidão’. Ficou célebre o
‘desabafo’ de Isaiah Berlin na palestra do All Souls:
‘Liberdade
é liberdade, não é igualdade, ou equidade, ou justiça, ou cultura, ou
felicidade humana, ou uma consciência tranquila.’
*Vicente
Jorge Silva (1945-2020), Um espírito livre: Uma tocante comoção
nacional, com destaque para uma ‘Carta aberta’ do Presidente Marcelo
Rebelo de Sousa, assinalou a morte do jornalista Vicente Jorge Silva. A
sua obra ficou inesquecivelmente associada ao lançamento da ‘Revista’ do
Expresso, depois ao lançamento do Público e, ainda no tempo da ditadura
salazarista, ao Comércio do Funchal. Tive o prazer e o privilégio de
trabalhar com Vicente no Expresso e no Público, e subscrevo inteiramente
os tocantes testemunhos que sobre ele têm sido partilhados. De uma
energia e generosidade contagiantes, Vicente amava a liberdade,
detestava o conformismo, respeitava a divergência. A sua abertura
intelectual e curiosidade cosmopolita renovaram profundamente a imprensa
nacional, abrindo-a à Europa e ao mundo. Como titulou o Público na sua
primeira página da passada quarta-feira, Vicente foi, acima de tudo, ‘Um
espírito livre’.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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