Os desconfiados parecem se concentrar no núcleo de cerca de 30% dos
brasileiros que aprovam a gestão de Bolsonaro. Por conveniência política
ou por dificuldade em se adaptar à mudança, é a eles que o presidente
apela para colocar suas vidas em risco ao invadir hospitais para provar
uma mentira que não existe. Diego Schelp, via Gazeta do Povo:
Para algumas pessoas, é muito difícil se conformar com o ritmo
alucinante com que os fatos mudam no mundo contemporâneo. Vivemos uma
era disruptiva, repetia-se à exaustão em palestras de autoajuda
corporativa antes mesmo de chegar essa nova e terrível doença
respiratória. O novo coronavírus aumentou a percepção de incertezas —
científicas, sociais, econômicas e, no caso do Brasil, políticas — e de
quebra acelerada de paradigmas. Mudam muito rápido, esses fatos da
pandemia.
Em sua live semanal no Facebook, na última quinta-feira (11), o
presidente Jair Bolsonaro estimulou os cidadãos brasileiros a entrar nos
hospitais dedicados ao tratamento de pacientes com covid-19 para colher
provas em vídeo de que não estão tão cheios como indicam as
estatísticas que vêm sendo divulgadas. Bolsonaro considera que os
números de mortos e infectados pelo novo coronavírus são
superdimensionados — e chegou a acusar seu ex-ministro da Saúde, Luiz
Henrique Mandetta (DEM), de ter contribuído para "inflar" os dados. Não
foi a primeira vez que o presidente colocou em dúvida os fatos da
pandemia.
Bolsonaro estava convencido, no início da pandemia, de que a covid-19
não passava de uma "gripezinha" e confiava na previsão de seu
ex-ministro da Cidadania, Osmar Terra (MDB), de que os óbitos pela
doença no Brasil não passariam de 2.100. Naquele momento, havia
previsões para todos os gostos; das mais otimistas, como a de Terra, até
as mais pessimistas (apocalípticas, como preferem alguns), como a do
Imperial College de Londres. Menos de dois meses depois, os fatos vão se
consolidando e provando que de inofensivo o novo vírus não tem nada.
Mas por que é tão difícil aceitar que as estimativas otimistas
estavam equivocadas e que os fatos são outros? Como justificar uma
desconfiança tão grande a ponto de arriscar a própria saúde e a de
pacientes e funcionários de hospitais para invadir enfermarias e filmar
leitos supostamente vazios?
O biólogo computacional e matemático americano Samuel Arbesman
publicou um livro, em 2012, que procura compreender a durabilidade dos
fatos e por que as pessoas têm mais facilidade para aceitar as mudanças
de alguns deles em detrimento de outros. Em The Half-Life of Facts: Why
Everything We Know Has an Expiration Date ("A Meia-Vida dos Fatos: Por
Que Tudo Que Nós Sabemos Tem uma Data de Expiração", sem publicação em
português), Arbesman identifica três categorias de fatos, de acordo com o
tempo que eles levam para mudar.
Há os fatos que mudam muito rapidamente, ou seja, que estão em
constante transformação. Entre eles estão, por exemplo, as oscilações na
bolsa de valores e as variações climáticas. As pessoas se conformam
mais facilmente com fatos que mudam constantemente. Aceita-se com
naturalidade que uma manhã fria e cinzenta dê lugar a uma tarde de sol
ou que, após um dia de alta na bolsa, o mercado abra com queda nos
negócios.
No outro extremo estão os fatos que mudam muito lentamente, depois de
vários séculos ou milênios, ou que nunca mudam. Entre eles estão o
número de continentes no Planeta ou a quantidade de dedos que os seres
humanos têm nas mãos e nos pés. São fatos tão duradouros e consolidados
que tornam-se inquestionáveis.
Entre essas duas categorias estão os fatos que mudam nem tão rápido,
nem tão devagar. São aqueles que modificam-se ao longo das décadas (a
exemplo dos costumes sociais), dos anos (se comer ovo faz mal ou não
para a saúde) ou de meses (como os conhecimentos a respeito do novo
coronavírus). Fatos assim são mais difíceis de assimilar.
Conflitos de gerações encaixam-se nessa categoria, que Arbesman chama
de "mesofatos". Por exemplo, costuma ser mais difícil para alguém que
se tornou adulto em uma época em que as pessoas quase não se divorciavam
aceitar e entender as novas configurações familiares da atualidade. A
sensação que se tem quando os "mesofatos" mudam — quando há modificações
na sociedade em que vivemos, por exemplo — é de que perdemos um pouco o
controle sobre a nossa vida.
A pandemia do novo coronavírus provocou grandes mudanças em fatos
consolidados ao longo de décadas e acelerou outras, já em curso. São
transformações nas relações pessoais e de trabalho, nos cuidados de
higiene, nos paradigmas econômicos e do papel do Estado, nos métodos de
ensino e até na forma de fazer ciência, pela primeira vez sendo obrigada
a produzir conhecimento em tempo real e sob escrutínio constante do
público não acadêmico.
A adaptação é difícil para todos, mas, para alguns, aceitar os novos
fatos é mais desafiador. Para quem desconfia até mesmo de fatos
consolidados há séculos, como o de que a Terra é esférica e não plana, é
praticamente impossível.
A boa notícia é que as pessoas com dificuldade de aceitar os fatos da
pandemia são uma minoria. Em média, oito em cada dez brasileiros
confiam nas informações sobre a pandemia veiculadas por jornais
televisivos (a proporção é de sete em cada dez no caso dos sites de
notícias), segundo pesquisa Datafolha de abril.
Os desconfiados parecem se concentrar no núcleo de cerca de 30% dos
brasileiros que aprovam a gestão de Bolsonaro. Por conveniência política
ou por sua própria dificuldade em se adaptar à mudança dos fatos, é a
eles que o presidente apela para colocar suas vidas em risco ao invadir
hospitais para provar uma mentira que não existe.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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