Quase todos os dias, via-se fumaça saindo do crematório do hospital psiquiátrico. Tiago Cordeiro, via Gazeta do Povo:
Os moradores de Hadamar, uma vila situada ao leste da Alemanha,
perceberam rapidamente que havia algo de errado. Quase todos os dias,
ônibus lotados com jovens, aparentemente portadores de problemas
mentais, davam entrada no hospital psiquiátrico instalado ao lado de um
monastério franciscano. Quase todos os dias, via-se fumaça saindo do
crematório da instituição. Com frequência, caía sobre o vilarejo uma
chuva de cinzas e restos de cabelo. Ao deixar o local, os ônibus estavam
vazios, apenas para retornar lotados tempos depois.
Não demorou muito para os boatos circularem na região, mas foi só
depois da Segunda Guerra Mundial que o mundo seria informado do que
acontecia ali. Entre 1941 e 1945, jovens eram retirados das famílias,
seja por ter Síndrome de Down ou um comportamento agitado. O governo
dizia que eles seriam levados para um local especializado em dar a eles o
melhor tratamento. O que acontecia, na prática, é que, ao chegar, todos
eram levados para um banheiro, a pretexto de se lavar. O que saía dos
chuveiros era gás letal.
Aplicado em seis centros psiquiátricos de extermínio, sendo um deles o
de Hadamar, o programa de eutanásia do nazismo caminhava com
velocidade, e as técnicas utilizadas ali seriam ampliadas para escala
industrial nos campos de concentração. Quanto às famílias, recebiam
certidões de óbito claramente forjadas – em alguns casos, jovens que
haviam extraído o apêndice no passado recebiam documentos atestando que a
causa da morte havia sido apendicite.
Oficialmente, o programa de eutanásia nazista durou de setembro de
1939 a abril de 1941. Na prática, ainda foram assassinadas pessoas com
deficiência em 1945, três semanas depois de os aliados terem ocupado o
país. Ao longo das investigações posteriores à guerra, o projeto foi
batizado com o nome Aktion T4, uma abreviação de Tiergartenstraße 4, o
endereço de uma casa em Berlim que sediou uma fundação de fachada onde
trabalhava Karl Brandt, médico pessoal de Adolf Hitler e um dos gestores
do programa de eutanásia.
Ao todo, 200 mil pessoas foram mortas em território alemão e outras
100 mil, em países ocupados no Leste Europeu. Além de crianças e
adolescentes retirados de suas famílias, perderam a vida milhares de
pacientes de hospitais psiquiátricos – muitos deles foram amplamente
esvaziados.
Esterilização e eutanásia
O programa de eutanásia foi sucessor de outra iniciativa, a de
esterilização de pessoas que, no conceito nazista, tivessem “genes
defeituosos”, fossem elas cegas, mudas, esquizofrênicas ou judias. Entre
1933, com a aprovação da chamada “Lei para a prevenção de descendentes
hereditariamente doentes”, e 1939, cerca de 360 mil pessoas foram
hospitalizadas à força e esterilizada.
Mas a iniciativa não parecia suficiente para Hitler. Ele já havia
declarado, em 1935, que planejava levar adiante um amplo programa de
eutanásia, mas que ele só seria possível em tempos de guerra, para
reduzir o impacto para a opinião pública. Com a escalada do conflito,
ele colocou em prática seu plano. Não formalizou a iniciativa para o
público em geral, mas documentou a ordem por escrito em uma carta em que
determinava a aplicação do programa.
O texto informa, citando o médico de Hitler e um dos chefes da
chancelaria, que seria o coordenador do programa: “Philipp Bouhler e Dr.
Brandt estão encarregados da responsabilidade de ampliar a competência
de certos médicos, designados pelo nome, de modo que os pacientes,
baseando-se no julgamento humano, que forem considerados incuráveis,
podem ser-lhes concedida a morte de misericórdia após exigente
diagnóstico”.
Num primeiro momento, foram selecionadas crianças menores de três
anos, com graves problemas físicos ou mentais. Com o passar dos meses, o
escopo foi ampliado e passou a abarcar vítimas adolescentes, que muitas
vezes sequer apresentavam doenças. Milhares de cérebros foram extraídos
e armazenados, supostamente para a realização de pesquisas que
permitissem compreender as diferenças entre essas crianças e as demais.
“Existe o mito de que apenas crianças com deficiências severas eram
mortas”, relatou a educadora e pesquisadora Sally Rogow no artigo
Hitler's Unwanted Children. “As crianças indesejadas podiam ser órfãs,
ou adolescentes com dificuldades emocionais ou de comportamento. A
campanha para remover crianças indesejadas não era apenas resultado da
eugenia e do racismo nazista, mas parte de um amplo esforço para
controlar a população alemã”.
Afinal, como lembra a pesquisadora, bastava uma família se insurgir
contra alguma decisão do governo para guardas baterem à porta ameaçando
fornecer uma avaliação psiquiátrica desfavorável de alguma das crianças
da casa. Jovens que se recusavam a integrar a Juventude Hitlerista, por
exemplo, poderiam ser declarados mentalmente incapazes. “Ao perseguir
determinados grupos de pessoas, eles conseguiram estabelecer um sistema
de controle de pensamento que alcançava profundamente a vida familiar”,
escreveu.
Reação tímida
A preocupação em omitir detalhes do programa se manteve constante,
ainda que o número de mortos aumentasse com o passar dos meses.
Líderanças das igrejas cristãs se posicionaram contra a iniciativa, em
especial o bispo luterano Theophil Wurm, que escreveu ao ministro do
Interior uma carta em protesto. Um juiz que criticou a iniciativa,
Lothar Kreyssig, perdeu o emprego. E o Vaticano se pronunciou em 1940:
“O assassinato de inocentes por culpa de defeitos físicos ou mentais não
é aceitável”.
O governo nazista não confirmava nem negava a existência do programa,
ainda que sua máquina de propaganda o defendesse abertamente, desde
meados dos anos 30. Em 1937, por exemplo, o regime havia levado, a todos
os cinemas da Alemanha, o filme Opfer der Vergangenheit: Die Sünde
wider Blut und Rasse (“Vítimas do Passado: O Pecado contra o Sangue e a
Raça”), que defendia a prática da eutanásia alegando que os doentes
mentais sofriam muito, e custavam demais ao Estado.
Com o fim da guerra e a instauração dos julgamentos dos líderes
nazistas, as atrocidades vieram à tona, ainda que o total de vítimas só
tenha se tornado conhecido a partir dos anos 1990, depois da abertura de
arquivos da Alemanha Oriental.
Quanto aos dois mentores do programa, Philipp Bouhler se enforcou
ainda em 1945, dias depois de ser capturado pelos soldados americanos.
Karl Brandt foi executado na forca em 1948. Quanto a Hadamar, 15 mil
pessoas foram assassinadas ali – é mais do que a população atual do
local, onde vivem 12 mil pessoas. O vilarejo ainda abriga um hospital
psiquiátrico, mas um memorial construído ao lado relembra e lamenta o
episódio.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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