Um historiador profissional não pode desfazer a história a pedido. Foi
mal? Foi bem? São perguntas sem sentido ou, pior, com sentido escondido
destinado a fundamentar movimentos políticos moralistas. Artigo de
Manuel Villaverde Cabral para o Observador:
Cada vez mais, especialmente em Portugal, o discurso histórico e o
discurso político remetem um para o outro e caem cada vez mais baixo sob
o efeito, não já das habituais ideologias ditas de «esquerda» ou de
«direita», mas sim de um moralismo cada vez mais rasteiro.
Inevitavelmente, este moralismo continua imbuído de réstias religiosas
ou patrióticas que nunca ajudaram ninguém a avaliar de forma minimamente
reflexiva aquilo que se passou há décadas ou há séculos e continua a
passar-se, sob novas formas, hoje em dia.
São múltiplos os jornalistas profissionais e os colaboradores
regulares da imprensa, alguns com intervenção partidária conhecida, que
praticam cada vez mais esse estilo moralizante que descreve as pessoas
das classes trabalhadoras ou os reformados provenientes dessas classes
como «os pobres» por oposição aos «ricos», sem nunca se darem ao
trabalho de dizer o que é «um rico» e muito menos analisar a
estratificação social portuguesa e os seus recursos económicos, em
termos nacionais e internacionais. Limitam-se a apelar a uma lágrima ao
canto do olho a fim de vender aos leitores e espectadores uma ideologia
partidária qualquer que pretende esconder a sua identidade e as suas
intenções, apelando aos «bons» contra os «maus». Não fazendo, em suma,
mais do que pregar moral.
Um autor que desliza constantemente do pensamento racional informado
para essa espécie de chantagem moralista é o fundador do infausto Livre,
Rui Tavares, conforme sucede num recente artigo com o título já de si
paternalista: «Não tenham medo…»!
Invocando a sua qualidade profissional, o que ele pretende, sob a capa
da investigação histórica e do debate profissional, é legitimar em
termos moralistas, semeados de proclamações patrióticas acerca das
«nossas glórias passadas», uma pretensa liberdade de destruir estátuas e
outras inscrições públicas que remetem para personagens, actos e
valores hoje completamente ultrapassados nas democracias liberais, como é
o caso da escravidão e do colonialismo. Uma coisa diferente é o
racismo: um sentimento existente em todo o lado, embora assim não
devesse ser, cujas manifestações devem portanto ser interditas e
penalizadas.
O moralismo de tardia lágrima ao canto do olho reside em fingir
ignorar que tais processos, que de resto não estão obrigatoriamente
ligados entre si, como provaram os Estados Unidos ao libertar-se da
colonização e terem uma guerra civil para por termo à escravatura, estão
há muito concluídos para todos os efeitos legais e, segundo toda a
probabilidade, não reaparecerão tão cedo. Com efeito, os antigos
sistemas políticos coloniais e imperiais, para não falar do comércio de
escravos, não têm rigorosamente nada que ver com a globalização, a qual
fez dar um salto em frente a muitos países sub-desenvolvidos.
Independentemente das vantagens materiais e simbólicas que todo um
conjunto de países, incluindo Portugal, beneficiou ao longo de séculos, o
facto é que a generalidade das regiões colonizadas tem hoje uma
personalidade jurídica e política semelhante à nossa e pode reivindicar
compensações em sede própria. Todas as antigas colónias fazem hoje parte
da ONU em pé de igualdade formal com os países que as colonizaram. Por
mais formal que seja esta igualdade, e é-o com certeza, o certo é que
existe e pode ser invocada a nível mundial…
Por mais fortes que sejam os seus sentimentos políticos
retrospectivos, um historiador profissional não pode com efeito desfazer
a história a pedido. Foi mal? Foi bem? São perguntas sem sentido ou,
pior, com um sentido escondido destinado a fundamentar futuros
movimentos políticos moralistas e não a resolver seja que problema fôr.
Faz algum sentido cada nova geração portuguesa mirar-se ao espelho e
confessar que os nossos antepassados não deviam ter feito o que fizeram?
Além de estulta, a pergunta só revela vontade de reescrever a história.
Se Portugal possui historicamente uma «vocação marítima», não é por
lhe faltar a moral anti-colonialista e anti-esclavagista de Rui Tavares,
como é óbvio, mas sim por ser uma estreita região ocidental da
Península Ibérica virada para o oceano e por ter feito alianças
internacionais que favoreceram a independência do Estado português
relativamente à centralização espanhola, ao mesmo tempo que consagraram a
sua soberania sobre os territórios que viesse a «descobrir» no sentido
que a palavra tinha na época: sem isso, não havia Brasil nem o resto da
actual América!
Rui Tavares está farto de saber isto. Por isso é que o seu moralismo é
demagógico, conforme confirmam aliás os contra-sensos do seu exaltado
discurso, como por exemplo essa diatribe trezentos anos atrasada contra o
«esclavagista Colson que traficou mais de 80.000 seres humanos»… Ora,
do ponto de vista ético, bastava um só escravo para o condenar… Aí é que
reside o moralismo de um discurso dirigido, como o autor conclui, «às
pessoas que têm a maturidade de reconhecer os seus erros». «Descobrir» o
Brasil foi um erro? De quem?
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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