Em Portugal [e no Brasil também] ainda é muito forte, sobretudo à
esquerda, o preconceito de princípio, ideológico, contra os sistemas de
ordem espontânea na sociedade. Então a esquerda, por regra, nega a sua
existência. Artigo da médica Isabel Soares, publicado pelo Observador:
Ao ler aleatoriamente algumas obras de escritores russos e de países
da Europa de leste, escritas ainda no tempo da União Soviética, aquilo
que mais me impressionou foi a ânsia de liberdade que perpassa por
algumas delas, a identificação que os autores fazem de liberdade com
vida no sentido mais primordial do termo, e de ausência de liberdade com
morte, a noção de que o sistema soviético era, mais do que qualquer
outra coisa, anti-vida.
Vaclav Havel dizia no seu texto “The Power of the Powerless”:
“Between the aims of the post-totalitarian system and the aims of life
there is a yawning abyss: while life, in its essence, moves toward
plurality, diversity, independent self-constitution, and
self-organization, in short, toward the fulfillment of its own freedom,
the post-totalitarian system demands conformity, uniformity, and
discipline. While life ever strives to create new and improbable
structures, the post-totalitarian system contrives to force life into
its most probable states.”
Vassili Grossman já reflecte sobre esta ideia em “Vida e Destino”,
mas é sobretudo no seu livro “Tudo Passa” que ela se exprime de forma
mais pungente e dramática. Dizia ele: “… a história humana é a história
da liberdade, da mais pequena à maior, a história de toda a vida, desde a
ameba até ao género humano, é a história da liberdade, sim, e da
transição da liberdade menor para a liberdade maior, e da própria vida
que também é liberdade. E esta fé dá-me força, e ponho-me a apalpar, no
meio dos farrapos prisionais, um pensamento precioso, luminoso: ‘Tudo o
que é desumano é absurdo e desaparece sem deixar rasto’.”
Mas foi ao ler mais recentemente o livro “The Logic of Liberty” de
Michael Polanyi que encontrei uma abordagem mais sistemática desta
questão da relação entre liberdade e vida. Este livro dedica-se em
grande parte a explorar a dinâmica e a importância de sistemas de ordem
espontânea nas sociedades, utilizando como exemplo principal a ciência
enquanto um caso de sistema de ordem espontânea intelectual. Para
Michael Polanyi, sistema de ordem espontânea numa sociedade humana
consiste num agregado de indivíduos ou instituições independentes que
interagem uns com os outros por sua própria iniciativa e ajustam-se
mutuamente ao serviço de certos objectivos e tarefas, estando sujeitos
apenas a leis que se aplicam uniformemente a todos eles. O contraponto a
um sistema de ordem espontânea é um sistema de ordem deliberada.
Tendo eu formação em Medicina, sei bem que toda a vida, pelo menos no
sentido material, físico do termo, desde a mais pequena bactéria até
aos seres multicelulares mais complexos, como nós próprios, é
constituída por sistemas de ordem espontânea que se foram formando, em
liberdade, ao longo de biliões de anos, a partir da matéria inanimada.
Todos os seres vivos sem excepção são constituídos por agregados de
elementos individuais que se ajustam espontaneamente uns aos outros por
mecanismos de autoregulação, com o objectivo de manter o conjunto, sem
que haja necessidade de qualquer comando central a determinar a função
de cada um dos elementos individuais.
Mas a ordem espontânea não existe apenas em cada um dos seres vivos
isoladamente. Muitas comunidades de animais formam sistemas de ordem
espontânea, e, como seria de esperar, eles também aparecem nas
sociedades humanas. Nestas últimas, o exemplo talvez melhor conhecido é o
da economia de mercado, cuja emergência não é fruto da acção
deliberada, consciente, de nenhum agente ou grupo de agentes, como o fez
ver Adam Smith através da sua metáfora da “mão invisível”. Outros
exemplos de sistemas de ordem espontânea que emergiram nas sociedades
humanas, e de que fala Michael Polanyi, são, para além da ciência, já
referido, a lei comum inglesa, a língua, a moral, as artes, o pensamento
político e religioso, e muitos outros ramos da cultura humana.
Os sistemas de ordem espontânea existentes nas sociedades humanas têm
as características de toda a vida – são delicados, complexos,
intrincados, multifacetados, fractais. Como explica Michael Polanyi,
eles cumprem funções que nenhum sistema de ordem deliberada pode
cumprir. Pela sua natureza, têm capacidade para organizar grandes
números de elementos (indivíduos ou instituições), o que nenhum sistema
de ordem deliberada consegue, mesmo recorrendo a formas extremas de
totalitarismo. Foram estas funções que deram origem às sociedades
modernas complexas em que vivemos. A civilização ocidental é em grande
parte fruto dos seus sistemas de ordem espontânea, tanto do ponto de
vista económico como intelectual e moral. Como este autor demonstra
detalhadamente no seu livro acima referido, as tentativas de planificar a
nível central a economia e a ciência, feitas na União Soviética,
revelaram-se uma impossibilidade, mas não deixaram de causar danos
imensos.
Estes sistemas de ordem espontânea enraízam-se nas forças profundas
da vida, daí a sua resiliência, adaptabilidade, flexibilidade, fluidez.
Não foi por acaso que o socialismo soviético, construído deliberadamente
de raiz, tentando fazer tábua rasa de todas as tradições anteriormente
existentes, se desmoronou como um castelo de cartas, apesar da sua
aparência inexpugnável. E em seu lugar ressuscitou o velho capitalismo,
e, não menos importante para o caso, o espírito religioso. Não foi por
acaso também que, ao contrário do que Marx preconizara, a revolução
socialista não aconteceu em primeiro lugar nos países mais
industrializados da Europa, mas foi acontecer num país com um
capitalismo atrasado e praticamente sem classe média. É exactamente a
este facto, um capitalismo atrasado, que Peter F. Drucker atribui o
sucesso da revolução socialista na Rússia, e o seu insucesso em países
de capitalismo mais avançado, como a Alemanha ou a Inglaterra. A
existência de um capitalismo forte e de uma classe média extensa e
heterogénea, profissionalizada, com interesses diversificados, gerada
pelo próprio capitalismo, e que em grande medida tinha absorbido e
substituído o proletariado, protegeu estes últimos países, tornou-os
resilientes contra a revolução socialista.
Sistemas de ordem espontânea não significam anarquia, como
habitualmente se pensa. O caso da ciência é paradigmático a este
respeito. Voltando a Michael Polanyi, a opinião científica exerce um
controlo apertado, ainda que mais ou menos informal, sobre os padrões da
ciência, não permitindo a sua degradação. Existe, sublinha ele, como
que uma constituição não escrita da ciência, à semelhança da
constituição não escrita do Reino Unido. Pelo contrário, estes sistemas
conseguem ordem onde, devido ao elevado número de indivíduos e
instituições em interacção, não é possível obtê-la de qualquer outra
maneira. Mas tudo isto não significa que estes sistemas de ordem
espontânea não tenham limitações ou inconvenientes. Claro que têm. São
apenas, para usar as palavras de Michael Polanyi, “a relative optimum”.
Já ninguém defende, por exemplo, um capitalismo selvagem. A luta pela
humanização do capitalismo tem sido uma constante nos últimos séculos e
está longe de ter chegado ao fim.
Mas vem tudo isto a propósito da distinção feita por Michael Polanyi
entre liberdades privadas e liberdades públicas. As liberdades públicas
consistem, segundo ele, em permitir que acções independentes de
indivíduos ou instituições se auto-coordenem espontaneamente ao serviço
de certos objectivos e tarefas. Ele considera que estas últimas são mais
importantes que as liberdades privadas para a estruturação das
sociedades. Diz mesmo que “a free society is characterized by the range
of public liberties through which individualism performs a social
function, and not by the score of socially ineffective personal
liberties”. Embora defendendo que as liberdades privadas também devem
ser preservadas, ele considera que muitas delas são socialmente sem
consequência, e que por isso foram permitidas por regimes totalitários,
como foi o caso da União Soviética. Diz ele que na Rússia de Staline as
liberdades privadas eram muito mais amplas do que na Inglaterra da
Rainha Vitória, enquanto que exactamente o contrário se passava com as
liberdades públicas. Talvez isto ajude a perceber porque é que parte da
nossa esquerda é defensora acérrima de certas liberdades privadas, mas
se opõe ferozmente às liberdades públicas.
Em Portugal ainda é muito forte, sobretudo à esquerda, o preconceito
de princípio, ideológico, contra os sistemas de ordem espontânea na
sociedade. Em geral, a esquerda pura e simplesmente nega a sua
existência, ou não reconhece a sua realidade. Para a esquerda quase tudo
onde há algum tipo de ordem tem de ser fruto da acção deliberada dos
seres humanos, quer na economia, no direito, na moral, na vida
intelectual, nas artes. Daí o à vontade e a falta de cuidado com que
interfere em todas estas áreas: na economia, privilegiando o Estado em
detrimento de instituições da sociedade civil em muitas actividades, ou
fazendo muitas vezes leis dificilmente exequíveis e que surgem aos olhos
dos cidadãos como absurdas; na justiça, procurando submetê-la aos seus
interesses; para não falar das tentativas de controlo da informação e
dos constantes atentados à liberdade de pensamento, neste tempo do
politicamente correcto.
Não atender aos sistemas de ordem espontânea da sociedade,
bloqueá-los ou dificultar de forma arbitrária e preconceituosa a sua
dinâmica, é o equivalente, a nível da sociedade, da falta de respeito
pela natureza física que nos levou aos desastres ambientais que
conhecemos. Provém da mesma tradição intelectual do positivismo, que nos
conduziu á atitude sobranceira de que tudo é controlável pelos poderes
da razão. É não reconhecer que a acção humana pode ter consequências
inesperadas. Assim como há limites às intervenções que são possíveis na
natureza sem a danificar, também há limites às intervenções que são
possíveis nas sociedades sem dificultar ou atrofiar o seu
desenvolvimento. Para já não falar das tragédias sociais que
intervenções políticas abusivas podem provocar, e de que há tantos
exemplos ao longo do século XX e ainda nos dias de hoje. Volto a
salientar mais uma vez que, ao dizer isto, de modo nenhum estou a
implicar que os sistemas de ordem espontânea sejam perfeitos e sem
falhas e não necessitem de melhoramentos e vigilância.
Em Portugal a esquerda e o governo têm dedicado um enorme esforço
para aprovar e implementar certas liberdades privadas, ao mesmo tempo
que algumas liberdades públicas previamente existentes são
paulatinamente reduzidas ou eliminadas. Não estou, com isto, a emitir
nenhum juízo de valor contra as liberdades privadas. Pelo contrário. Mas
reconhecer a importância e o valor intrínseco dos sistemas de ordem
espontânea para a criação de uma sociedade livre significa no nosso caso
defender e alargar o âmbito da iniciativa privada na economia, a
independência da justiça, a criação de um sistema educativo autónomo e
livre associado a liberdade de escolha das famílias, a independência da
ciência, das artes, da cultura e do pensamento em geral. No tempo do
politicamente correcto isto não é pequena tarefa. Mas significa ainda
mais uma coisa que actualmente está fora de moda: dar valor e aceitar
como uma coisa real a nossa herança intelectual, moral e histórica,
nacional e do Ocidente, fruto dos tais sistemas de ordem espontânea em
que consciente ou inconscientemente estamos integrados, não para a
manter estática, mas apenas porque só a partir dela alguma coisa que
valha a pena pode ser alcançada. Se não atendermos a isto, tudo o que
fizermos acaba, como na profecia certeira de Vassili Grossman sobre a
União Soviética, por desaparecer sem deixar rasto.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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