Dinheiro não nos falta, visto que nenhum corte na carne vimos até agora
do setor público, nem dos bilhões reservados para a campanha eleitoral.
Fernando Schüler para a Gazeta do Povo:
João Pereira Coutinho fez uma pergunta estranha em seu artigo desta
semana: por que salvar um jovem delinquente e abandonar um velho
exemplar? A pergunta é provocativa, mas real, nestes tempos de pandemia.
O debate é o seguinte: o que fazer quando as UTIs explodem de gente e
há mais pessoas em situação crítica do que a capacidade de atendimento?
Foi o dilema vivido pela Itália, semanas atrás. Uma publicação do
Colégio Italiano de Anestesia, Analgesia, Reanimação e Terapia Intensiva
criou um protocolo para lidar com o tema espinhoso. O conceito é
simples: dado que os recursos são escassos, o foco é preservar quem tem
“maior probabilidade de sobrevivência”. Como segunda opção, quem tem
mais anos de vida pela frente, de forma a “maximizar benefícios para a
maioria”. Logo me perguntei: quantos anos? 50 anos me parece OK; dez
anos soa pouco relevante. Quem vai decidir essas coisas?
O protocolo é, por óbvio, utilitarista. Seus critérios chocam a
partir de um olhar menos treinado. Um deles, em particular: estabelecer
um limite de idade na entrada na UTI. Pessoas serão excluídas a priori.
Me incomoda imensamente isso. Imaginei meu velho pai, se vivo fosse, aos
91, dando de cara na porta.
Concorde-se ou não com este ou aquele critério, é melhor ter algum
protocolo do que nenhum. O pior cenário é quando escolhas desse tipo são
tomadas subjetivamente, no calor da hora.
Há quem vá mais longe nisso tudo. Peter Singer (nosso filósofo
utilitarista-chefe) defende que a sociedade como um todo deve pensar não
em vidas perdidas, mas em anos de vida perdidos. Ele menciona um estudo
mostrando que a Itália perdeu em média “apenas” três anos de vida para
cada morte registrada. Singer vai além: sugere que a melhor métrica
seria calcular tudo em termos de “bem-estar”. Certo seria calcular o
quanto perdemos, em termos de felicidade agregada, parando a economia
por dois ou três meses, vis à vis o benefício de preservar um certo
estoque de “anos de vida”, em geral destinados a pessoas muito idosas.
Singer acredita que os economistas facilmente fariam essa conta,
colocando um preço na vida humana. Perguntei para um amigo economista, e
ele concordou: “fazemos isso toda hora, a começar quando decidimos o
orçamento público”.
De minha parte, desconfio de tudo isso. Sigo com o amigo Coutinho: “o
problema do utilitarismo é que ele é assaz flexível”. Digo que é
preciso propor algum critério mais objetivo para saber quando a
contabilidade de vidas humanas é aceitável.
Joshua Greene sugere o seguinte: concordaríamos em sacrificar um e
salvar quatro operários distraídos, no famoso dilema do bonde
desgovernado. Com uma condição: cada um imaginando a si mesmo dentro do
experimento. Seria ilógico não multiplicar por quatro a chance de
sobreviver. O mesmo raciocínio deixa de funcionar quando o contexto é
mais aberto. Alguém toparia viver em uma sociedade na qual pudesse ser
sacrificado, a qualquer momento, para salvar três ou quatro pessoas?
O utilitarismo é uma ética plausível em situações extremas, quando as
opções em jogo são poucas e os critérios amplamente compartilhados. Mas
é implausível na grande sociedade, onde a conta de maximização do
bem-estar é exageradamente “flexível”, e todos demandamos, com razão,
direitos iguais.
O país deveria pensar nisso quando ingressa na fase mais crítica da
pandemia. Deveríamos fazer qualquer coisa para evitar que nossos
profissionais de saúde tenham de fazer escolhas de vida e de morte entre
cidadãos brasileiros, por falta de leitos e respiradores. Dinheiro não
nos falta, visto que nenhum corte na carne vimos até agora do setor
público, e nem mesmo os R$ 2 bilhões que nossos políticos reservaram
para gastar na campanha eleitoral foram destinados à saúde. Seria uma
estranha forma de contabilidade humana investir em panfletos o
necessário para que nenhum de nossos velhos seja retirado de um
ventilador, em um hospital qualquer deste país imenso e ingrato.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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