Para os aliados políticos, um viés sempre favorável. Para os demais, a condenação imediata. Ana Paula Henkel, via Oeste:
O Massacre de Boston, o conflito histórico na América colonial que
energizou o sentimento antibritânico e abriu caminho para a Revolução
Americana, começou com uma briga de rua e transformou-se num massacre.
Na noite de 5 de março de 1770, numa Boston coberta de neve, oito
soldados britânicos, liderados pelo capitão Thomas Preston, confrontaram
uma multidão de colonos que se reuniram para protestar do lado de fora
de um dos prédios da Coroa britânica. Ignorando o comando de Preston de
dispersar, a multidão enfurecida se aproximou, jogando bolas de neve,
pedaços de pau e conchas nos militares.
Quando um dos objetos atingiu o soldado Montgomery, ele disparou sua
arma depois de ter gritado aos compatriotas: “Maldito seja, fogo!”. Os
testemunhos variam quanto ao que aconteceu a seguir, mas todos terminam
com a tropa disparando contra a multidão. Quando a fumaça se dissipou,
três pessoas tinham morrido e várias outras ficado feridas, duas das
quais morreram mais tarde.
Após os acontecimentos do evento que se tornou um dos mais
importantes da história americana, a indignação dos colonos obrigou o
governo a prender Preston e seus homens. Eles foram acusados de
assassinato e de “ser movidos e seduzidos pela instigação do diabo e de
seus próprios corações perversos”.
Nos meses que antecederam o julgamento dos soldados britânicos, uma
batalha na mídia foi travada entre legalistas e patriotas quanto a quem
era o culpado pelo incidente.
Um lado, sem atentar aos importantes detalhes do mortal evento,
tentava incansavelmente incendiar a opinião pública e o júri contra os
soldados em manchetes sensacionalistas em que eram caracterizados como
“bárbaros ferozes sorrindo para suas presas”.
Duzentos e cinquenta anos depois, ainda é possível ver os frutos
obscuros dessa imprensa que, sem se aprofundar nas investigações dos
fatos, vilipendia e agride não apenas a verdade, mas a inteligência de
cada um de nós. Divisões ideológicas fazem parte do mundo há séculos,
mas talvez estejamos testemunhando um dos períodos de maior animosidade
no campo político e que anda empurrando o antigo jornalismo
investigativo para a rasa militância do proselitismo barato.
Em meio a uma crise pandêmica histórica, não sobra muito espaço para
tantas notícias relacionadas à corrida eleitoral presidencial
norte-americana como em anos passados. Bem, espaço até há, o que não há é
vontade de grande parte da imprensa, ou assessoria do Partido
Democrata, como queiram, para questionar, expor e até investigar as
últimas graves alegações de Tara Reade, ex-secretária de Joe Biden, de
agressão sexual.
As principais publicações da mídia, que deram total cobertura das
alegações de Christine Blasey Ford contra Brett Kavanaugh, o então
candidato à vaga da Suprema Corte em 2018, até agora “não se
interessaram” pela mulher que se apresentou há um mês e acusou o
candidato democrata à Casa Branca, Joe Biden, de agressão sexual, no
início dos anos 1990, quando ainda era senador.
Quando Christine acusou Kavanaugh em uma reportagem do jornal The
Washington Post, em setembro de 2018, os maiores veículos da imprensa
norte-americana deram total cobertura em todas as plataformas. A
alegação da vítima estampou jornais e revistas nos seis dias seguintes
ao do relatório do Washington Post e prosseguiu sendo repetida
incansavelmente durante as semanas que antecederam a sabatina do juiz
para a cadeira vaga na Suprema Corte. Democratas, celebridades,
cantoras, atrizes e fundadoras de movimentos feministas entoavam pelo
país o mesmo cântico: “Acreditem na vítima!”, sem o devido processo ou a
devida investigação dos fatos.
A cobertura da atual alegação de agressão sexual por Biden mostra em
definitivo que a mídia protege aliados políticos acusados desse crime e
tenta destruir aqueles que considera oponentes.
No caso Kavanaugh, Christine Ford não conseguia se lembrar quando ou
onde seu suposto ataque sexual tinha acontecido, sua família não a
apoiou e não há provas sequer de que ela tenha conhecido Kavanaugh. Por
outro lado, Tara Reade alega e relata com detalhes quando a suposta
agressão sexual de que foi vítima ocorreu, o irmão diz que ela lhe
contou na época, quando trabalhava para Biden em seu gabinete.
Até agora, pouquíssimas linhas foram dedicadas ao caso pelos
principais veículos de comunicação, no Brasil ou nos Estados Unidos —
nada comparável ao espaço dedicado à investigação que envolvia
Kavanaugh. Curiosamente, o canto “Acreditem na vítima!” não vale mais,
não para o caso de Joe Biden. Na verdade, atrizes como Alyssa Milano,
que publicamente defendeu a acusadora de Kavanaugh (“Acreditem sempre na
vítima!”), já endossaram Biden na atual campanha e declararam que o
democrata merece o devido processo contra as sérias acusações porque Joe
Biden é um homem bom.
Mas não é preciso ir até a América para encontrar o duplo padrão de jornalismo da atual imprensa.
Durante a CPMI das Fake News em Brasília, um depoente fez graves e
abjetas acusações de assédio sexual contra uma jornalista. Em poucas
horas, jornalistas, celebridades e políticos estavam na internet e em
todas as plataformas repudiando a declaração e defendendo a honra da
jornalista. Justo.
Mas o mesmo não se viu quando o ator José de Abreu proferiu palavras
horríveis contra a atual secretária de Cultura, Regina Duarte. Não
lembram? Vamos lá: “Fascista a gente trata no cuspe, vagina não
transforma mulher em ser humano”. E quando uma jornalista fez piada
pedindo um “sambinha, o Bicho da Goiaba” em um programa de rádio depois
de rir da experiência na infância da ministra Damares Alves? A ministra
havia relatado que, quando criança, subiu em um pé de goiaba para tirar a
própria vida, mas que teve um “encontro” com Jesus e isso a teria feito
desistir da ideia absurda.
Damares virou chacota em grande parte da imprensa limpinha, que, na
verdade, só protege os que se sentam à mesma mesa politico-ideológica.
Não é difícil perceber as razões pelas quais a imprensa mainstream
vem perdendo, vertiginosamente, terreno e credibilidade aos olhos de
leitores e telespectadores. Além das teorias estapafúrdias sobre
eleições vencidas com fake news no WhatsApp ou por “interferência
russa”, agora ela insiste em mostrar (em muitos casos, esconder) a
adaptável régua moral de suas publicações, que, com vasta e conivente
elasticidade, molda os fatos, “fa-tos”, de acordo com seus interesses.
Em 1770, a animosidade apontada contra os soldados britânicos no
Massacre de Boston fez com que nenhum advogado tenha se apresentado para
defendê-los. Por ideologia, ninguém se interessou em investigar os
fatos e o que realmente poderia ter acontecido. Por fim, a ajuda veio de
maneira surpreendente na figura improvável de John Adams, um patriota e
um dos advogados mais respeitados de Boston. Adams não tinha simpatia
pelo governo britânico. Mas, depois de algumas investigações, passou a
acreditar que os soldados eram inocentes da acusação de assassinato e
que mereciam um julgamento justo.
Adams garantiu a absolvição do capitão Preston, alegando que os
homens sob seu comando haviam disparado sem ordem. Os argumentos de um
dos futuros Pais Fundadores da América e daquele que se tornaria o
segundo presidente do país também levaram seis soldados a ser
considerados inocentes, e outros dois a receber um veredito menor de
homicídio culposo.
Embora difamado na época, Adams depois refletiu que sua defesa dos
soldados britânicos fora uma das melhores peças de serviço que havia
prestado ao país. Ele confirmou os princípios da Justiça e o direito a
um julgamento justo, independentemente de qualquer predileção ou
afinidade ideológica. Como Adams disse em sua declaração final no
julgamento: “Fatos são coisas teimosas; e, quaisquer que sejam nossos
desejos, nossas inclinações ou os ditames de nossas paixões, eles não
podem alterar o estado dos fatos e evidências”.
Querida imprensa, fatos são coisas danadas e teimosas.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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