O pânico, que ainda não encontra justificativa nos números, dá vazão a
uma versão contemporânea do mito diluviano que eliminará os maus e
redimirá os bons. Artigo de Paulo Polzonoff Jr. para a Gazeta:
Nos últimos dias, fomos bombardeados por notícias sobre o
coronavírus. O que começou como um punhado de casos na longínqua China
(0,0005% da população) acabou revelando ao mundo a curiosa e exótica
dieta daquele país e sua autoritária capacidade de usar a força para
conter uma ameaça sanitária em potencial. E expôs, pela segunda vez
neste ano, o desejo mal contido de algumas pessoas verem a Humanidade
“purificada”.
É o que chamo de “fetiche da peste”. Ele se revela de tempos em
tempos, sempre que alguma doença surge em algum ponto remoto do planeta,
matando algumas dezenas e até centenas de pessoas em poucos dias ou
meses, para depois desaparecer, vencida provavelmente por antibióticos
ou pela incrível capacidade humana de resistir a patógenos desconhecidos
num dia e derrotados noutro.
Foi assim com a epidemia de AIDS (que não tem cura ainda, mas cujo
potencial assassino está bastante controlado) nos anos 1980, com o surto
de ebola, com a doença da vaca louca, com o H1N1 e com a Saars. Está
sendo assim com o coronavírus, apesar de os números mostrarem que a
doença não é tão letal assim e nem de longe tem chance de aniquilar toda
a Humanidade. Sim, os números são do governo comunista chinês e há
razões de sobra para não se confiar nesse tipo de estatística. Mas, a
não ser que o vírus mate centenas de pessoas em países com estatísticas
mais dignas, ainda não há o que temer.
O fetiche da peste exibe seu lado mais perverso ao expressar um
desejo mal contido por um “milagre às avessas” qualquer capaz de
“purificar” a Humanidade, de eliminar os maus, de criar uma espécie de
“caos virtuoso” a partir do qual surgirá uma ordem igualmente virtuosa e
na qual os bons reinarão redimidos.
Mito diluviano
Trata-se de uma fantasia antiga – tão antiga quanto a própria
história. Está lá a narrativa bíblica do Dilúvio que não me deixa
mentir. E há versões semelhantes na mitologia chinesa, grega, hindu,
nórdica, maia, africana e até aborígene. A reação contemporânea às
grandes “pestes” do dos séculos XX e XXI (entre as quais incluo as
pestes reais, como a de varíola e a Gripe Espanhola, e também as pestes
falsas já citadas) nada mais é do que uma versão com verniz científica
do dilúvio purificador.
E é aí que mora o perigo. Porque a ciência não só criou como já pôs
em prática sua própria versão do dilúvio purificador. E, aqui, não estou
falando das várias teorias da conspiração que cercam os surtos de AIDS,
ebola e, agora, coronavírus. Não. Estou falando da grande experiência
eugenista que pretendia criar uma versão pura da Humanidade por meio da
eliminação de deficientes, “depravados” e dos considerados racialmente
inferiores.
Pode-se argumentar com algum otimismo que essa experiência ficou
marcada na história e no inconsciente coletivo como um episódio infame,
destinado a nunca mais se repetir. Gostaria muito de acreditar nisso.
Mas acho que a força do mito purificador ainda é sedutora demais e ainda
encanta muita gente.
Um sinal desse encanto são os gritos catastrofistas de Greta Thunberg
e seus seguidores, que veem na possibilidade de uma extinção em massa a
oportunidade da refundação do ser humano – menos ambicioso, menos
extrativista, menos próspero e, em essência, mais comunal e menos
capitalista.
Jordan Peterson, em seu pouco lido e muito citado 12 Regras Para a
Vida, aborda com perfeição esse tema ao falar da necessidade humana por
ordem sempre que nos percebemos num cenário de caos. É uma necessidade
tão grande que investimos todo o nosso intelecto na tentativa de gerar
essa ordem que supostamente nos trará a paz eterna e uma versão técnica
do Paraíso na Terra. E é a partir dessa necessidade por ordem que o
intelecto dá vazão a ideias como as de planejamento centralizado de
todos os aspectos da vida, do alimentar ao sexual. Um planejamento que
não pode nascer espontaneamente e que precisa ser imposto de cima para
baixo. Bom, você já sabe onde vai dar isso.
A ciência, ou melhor, o cientificismo contribui para a criação dessa
esperança falsa, macabra e arrogante. Usando o velho e ultrapassado
malthusianismo, camuflado por algum verniz da moda, ele pinta vários
cenários futuros nos quais está implícita a necessidade da eliminação de
milhões de seres humanos descartáveis para que outros tantos milhões de
escolhidos e ungidos sobrevivam, prosperem e levem a Humanidade a um
outro patamar qualquer.
Fetiche da guerra
Não por acaso, o fetiche da peste tem um irmão gêmeo – e é curioso
que os dois tenham sido vistos de mãos dadas neste primeiro mês de 2020.
Falo do fetiche da guerra, que vê na possibilidade de um conflito
mundial, quiçá nuclear, a oportunidade para a recriação da Humanidade.
Se bem que o fetiche da guerra consegue ser ainda mais macabro, uma vez
que faz uso de noções como a nobreza e o heroísmo para propor, nunca
explicitamente, a aniquilação daqueles que parecem estar sobrando.
Sinto ser eu a furar a bolha de alguns, mas não, o coronavírus jamais
será uma Peste Negra, cujas consequências, entre elas o ateísmo (esse,
sim, epidêmico), sofremos até hoje. Não, o coronavírus não será a Gripe
Espanhola nem a varíola – cujas mortes contabilizadas aos milhões são
prova, aliás, de que o mito diluviano falha miseravelmente em dar à luz
essa utopia de uma sociedade perfeita ou pelo menos mais ordeira.
O coronavírus vai passar. Mas, daqui a alguns anos, outra doença,
ameaça de guerra ou até um desses meteoros que costumam “passar perto”
da Terra surgirá, despertando novamente o pânico algo cínico que, por
trás de uma máscara e besuntado em álcool em gel, esconde essas
fantasias sombrias de purificação do ser humano.
Resta-nos torcer para que neste caso, como agora e sempre, estejamos bem protegidos dentro da caótica arca.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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