Toda vez que um tuiteiro puxa as calçolas pela cabeça porque um tuíte de
Bolsonaro vai acabar com a democracia, o que ele quer é prestígio.
Bruna Frascolla, para a Gazeta do Povo:
Ultimamente o Brasil tem assistido a uma coqueluche de “motivos de
impeachment” para Bolsonaro. Os motivos vão desde golden shower a briga
com jornalista, e toda semana aparece um. Seria um erro dizer que todos
os que embarcam na onda são lulistas. Afinal, há muitos antipetistas
entre eles. E, embora seja possível enxergar um movimento tucano nesse
sentido, a filiação partidária é insuficiente enquanto explicação geral.
Ou alguém crê que toda criatura que fala sem parar de impeachment de
Bolsonaro é lulista ou tucana? Para entender o fenômeno, é preciso
analisar o funcionamento geral da sociedade.
A moeda do prestígio
Pessoas de evidente e inegável utilidade para as suas comunidades são
premiadas com uma moeda invisível chamada prestígio. Como qualquer
moeda, as pessoas podem tê-la em variadas proporções. E, como em
qualquer sistema de preço, a cotação em prestígio varia conforme a lei
da oferta. Médicos e enfermeiros são ambos úteis à sociedade, mas
médicos são mais raros do que enfermeiros – logo, são mais prestigiados.
Que o prestígio cresça conforme a raridade, em vez de ser algo
intrínseco a uma profissão, podemos comprovar olhando para um país onde
há abundância artificial de médicos: Cuba. E que o prestígio está
atrelado à utilidade para a sociedade, vemos com o fato de a profissão
do ladrão não se tornar respeitável à medida que caia a criminalidade.
O prestígio, portanto, se origina do bem comum – que é uma noção lentamente trabalhada pela sociedade.
Tal como as moedas financeiras, a moeda do prestígio pode ser
falsificada. Um médico normal e um médico homeopata podem ser igualmente
prestigiados por se presumir que ambos, igualmente, sejam muito
benéficos à sociedade. Mas só um deles tem, de fato, conhecimento
eficaz. Economistas que defenderam o congelamento de preços para
resolver o problema da “inflação inercial” nos anos 1980 eram, todos
eles, muito prestigiados – porque se estimava que o seu raro
conhecimento econômico fosse importante para o bem comum.
Passar-se por inteligência benéfica implica cunhar moeda falsa de
prestígio e é algo que perturba esse incessante processo social de
decidir o que é bom.
Outra semelhança entre a moeda do prestígio e as moedas financeiras é
que ambas podem ter validade em ambientes restritos. Um homem que
chegue à Turquia com os bolsos cheios de reais se considerará pobre. Do
mesmo jeito, um dervixe turco no Brasil é um Zé Ninguém porque entre nós
não se prestigiam dervixes.
As moedas financeiras podem ser criadas em comunidades ainda menores
que países: até bairros e escolas podem criar moedas internas. No caso
do prestígio, isso é ainda mais comum do que entre as moedas
financeiras. Com o Brasil tão inflamado em tribalismos políticos, isso é
bem visível. Um homem pode pretender cuspir em cem “fascistas” para
obter prestígio e respeito, mas esse prestígio obviamente estará
restrito à sua facção. Afinal, o brasileiro comum acha reprovável sair
cuspindo nos outros, pois suas mães ensinaram que isso é muito feio.
A moeda dos nichos
Podemos futucar os bolsos de um viajante estrangeiro para descobrir a
moeda que ele carrega e, assim, descobrir sua nacionalidade. Do mesmo
jeito, se encontramos alguém que parece se orgulhar de uma conduta
estranha, devemos considerar isso a moeda do seu nicho, da sua facção.
Uma jovem deputada é assassinada no meio da rua, seus fãs colocam uma
placa em sua homenagem e um homem se orgulha de arrancar essa placa e
quebrá-la perante a turba. Essa é uma atitude da qual o comum dos
brasileiros se orgulharia?
Não. Logo, para descobrir por que ele se orgulha disso, é preciso
encontrar a sua turma. Encontrando-a, entendemos que essa turma acredita
que contra uma psolista vale qualquer coisa, que ela é incapaz de
pensar na deputada apenas como um ser humano assassinado, uma pessoa que
até tem uma família e pessoas que gostam dela por razões não-políticas.
Quebrar um símbolo daquela pessoa é algo benigno dentro dos estreitos
limites daquela facção, que entende a destruição do Inimigo como o bem
da sua diminuta e facciosa comunidade. O mesmo raciocínio vale para a
conduta dos cuspidores de “fascistas”.
No entanto, as facções políticas às vezes convencem a sociedade de
que elas lhe são benignas e de que tudo o que fazem tem em vista o bem
comum. Esse, definitivamente, não é o caso da direita que surgiu após o
PT.
Por mais que, com razão, se afirme que a democracia se faz de
pluralidade, o máximo que a direita conseguiu foi o reconhecimento de
sua legitimidade. E ninguém de fora da facção a reconhece como benéfica
em si mesma. Trocando em miúdos, nunca deu muito prestígio ser de
direita — nem mesmo quando Bolsonaro se elegeu.
Já a esquerda, ao contrário, teve a cotação em prestígio altíssima
desde quando os militares, movidos pelo anticomunismo, decretaram o
AI-5. A partir daí, opor-se a opressões arbitrárias passou a ser algo
identificado com a esquerda. A esquerda descobriu junto com os militares
que, por alguma razão, o Brasil gosta de democracia. Ela largou as
diatribes contra a democracia burguesa. Munida de muitos professores em
suas fileiras, a esquerda pôde fraudar a história e passar-se por
defensora perene da democracia brasileira, mesmo que tenha conspirado
contra Jango para implantar uma ditadura totalitária.
Felizmente, a esquerda perdeu esse prestígio. O processo começou com a
descoberta do Mensalão e culminou com a redução da esquerda ao culto da
personalidade de Lula. O politicamente correto lançou a pá de cal e a
esquerda deixou de ser identificada com a defesa da democracia ou mesmo
com a defesa dos pobres para se tornar fiscal de fantasia carnavalesca.
Hoje, a esquerda nada mais é que um catecismo dogmático que inclui a
fé inabalável na Inocência de Lula e na malignidade de todos os homens
brancos que não são Lula, Ciro Gomes, Freixo, etc. A esquerda está se
tornando aquilo que a direita mais xucra nunca deixou de ser: uma facção
de malcriados, sem nenhum respeito fora do nicho.
A moeda comum
Transformar a esquerda em passado seria mais fácil se o Anti-Esquerda
que venceu o PT nas eleições não fosse um simplório. É verdade que ele
defende ditadura, mas, infelizmente, é só mais um político brasileiro a
fazer isto. Homenagens a Cuba infestam a vida escolar dos alunos há
décadas e a catástrofe da Venezuela, sob o nosso nariz, também encontra
defensores perenes. Uma coisa, porém, é um elegante Professor Doutor da
USP defender ditaduras que outros intelectuais também defendem – outra,
completamente diferente, é um simplório defender uma ditadura que não
conta com simpatia de intelectuais.
A universidade e o mundo das artes funcionam como Casas da Moeda de
prestígio da sociedade brasileira. Desde a última ditadura, elas
passaram pelo mesmo processo de esquerdização que a classe média. Mas,
durante o petismo, seguiram o rumo contrário do grosso da classe média e
se aprofundaram na partidarização. (Explicar isto envolveria um estudo
do Reuni e dos editais para artista). Gostemos ou não, queiramos ou não,
o Brasil não tem uma vida intelectual independente de agentes estatais.
Essa emissora de moeda franca passou a se colocar a favor do item
mais bem-aceito no Brasil fora de nichos: a democracia. Defenda a
democracia e encontrará no Brasil um apoio de setores amplos.
Agora, definir democracia é outra história. Nessa operação, joga-se a
água junto com o bebê. A democracia virou, na cabeça de gente aspirante
a prestígio, coisa refinada e chique. Dizer “sou democrático” está se
tornando o novo análogo de dizer algo como “leio um tratado filosófico
por semana”. Aí é muito fácil chamar o atual chefe do Executivo de
antidemocrático. O chefe do Executivo, os taxistas mal-humorados, os
tiozões do zap-zap, o pai de Tati Bernardi e todos os merecedores das
cusparadas de Zé de Abreu.
Democracia, mesmo, só quando todos os votantes e votados beberem chá com o mindinho esticado.
A cunhagem falsa
Toda vez que um tuiteiro puxa as calçolas pela cabeça porque uma
declaração, tuíte ou compartilhamento de Bolsonaro vai acabar de vez com
a democracia, o que ele quer, com essa ação extravagante, é o
prestígio. “Olhem como sou democrático e chique!” é o subtexto. Assim o
antipetista de outrora mostra a todos que sua própria imagem é muito
diferente daquele simplório do Planalto. Serve unicamente ao propósito
de cuidar de sua própria imagem.
Isso prejudica a sociedade porque passa a falsa impressão de que há
uma vigilância sobre o presidente e um incansável zelo pelas liberdades
democráticas (que nem dependem só do presidente). Se há muita gente
fazendo estardalhaço a cada coisa dita ou não dita por Bolsonaro, parece
difícil crer que este governo não esteja sob vigilância de liberais
autênticos.
Mas não está. O maior exemplo disso talvez seja o fato de Weintraub
ter criado em 12 de dezembro, numa única canetada, nada menos que 5
universidades federais: “a Universidade Federal de Jataí (UFJ),
Universidade Federal do Agreste de Pernambuco (Ufape), Universidade
Federal de Rondonópolis (UFR), Universidade Federal do Delta do Parnaíba
(UFDPar) e Universidade Federal de Catalão (UFCat).” Nem Dilma fez
isso! Lula passou 8 anos no poder, e criou 14 federais; Bolsonaro, em
apenas 1 ano, criou 5!
Então o estado de coisas é o seguinte: a esquerda grita que Bolsonaro
é um novo Pinochet (um ditador com Chicago boys), e os
antibolsonaristas egressos do antipetismo, que se dizem liberais,
engolem a lorota. Como cobrir declaração e inventar teoria conspiratória
é mais divertido do que ler diário oficial, ficamos, em meio a essa
gritaria, achando que narcisistas simulando pânico são vigias da
democracia. Mas quem vigia?
O Brasil não tem um ditador. Tem apenas mais um presidente
democrático. Nossos presidentes, democráticos ou não, são
patrimonialistas e fazem demagogia com empregos públicos. Bolsonaro,
porém, é o primeiro presidente brasileiro a contar com fiscais de
declarações em vez de fiscais de ações. Se a imprensa e a opinião
pública fossem assim em 1967, Costa e Silva não precisaria de um AI-5.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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