Equivocado, ambíguo, perigoso e até herético são termos usados por
conservadores para descrever as orientações sobre o sínodo que Francisco
montou. Coluna de Vilma Gryzinski:
“Rezem por mim”, costuma pedir o papa Francisco.
Para os que acreditam em orações – e na sinceridade do pedido do papa –, nunca foi tão importante rezar.
O Sínodo da Amazônia, marcado para outubro, está botando fogo nos
rachas que já não são poucos entre “conservadores” e “progressistas” da
Igreja (aspas para enfatizar o excesso de simplificação dos rótulos).
E não são apenas os suspeitos de sempre que estão revoltados com o
Instrumentum laboris, o documento preparatório para a assembleia
especial do Sínodo dos Bispos para a Região Pan-Amazônica.
Durante três semanas, 250 bispos de nove países amazônicos vão
discutir no Vaticano o tema “Amazônia – novos caminhos para a Igreja e
para uma ecologia integral”.
Ninguém precisa roer as unhas de curiosidade esperando os resultados.
Já se sabe o que eles vão propor e a oposição não vem apenas de
propostas mais conhecidas, como a ordenação de homens casados e de
mulheres para compensar a falta de sacerdotes na vastidão amazônica.
Na verdade, os mais críticos acham que o tipo de sacerdócio proposto
pelo documento preparatório é o contrário do que a Igreja tradicional
tem como missão.
Aos religiosos católicos, restaria pregar uma “cosmologia panteísta”
que abrace os mitos dos povos locais, reze na seita da Mãe Terra e
dispense pilares da doutrina católica em favor das crenças autóctones.
“Em suma, transformar o Corpo místico de Cristo numa vulgar ONG
eco-comunista”, segundo análise de um dos maiores críticos de Francisco e
sua turma, o cardeal alemão Walter Brandmüller.
As posições do cardeal são ressaltadas por ninguém menos que o
chileno José Antonio Ureta, ligado ao Instituto Plínio de Oliveira e
criador da Fundação Roma. Nem precisa dizer qual a linha dele.
“O Intrumentum laboris considera os mitos pagãos das tribos
amazônicas manifestações da Revelação de Deus e pede diálogo e aceitação
dessas superstições”, diz.
“EXPERIÊNCIA CÓSMICA”
O documento, de fato, entra em terreno teológico pantanoso ao exaltar
“a grande oportunidade para a Igreja de descobrir a presença encarnada e
ativa de Deus na espiritualidade dos povos originais.”
E mais: “O Espírito criador que preenche o universo é o Espírito que
durante séculos nutriu a espiritualidade desses povos antes mesmo do
anúncio do Evangelho e os leva a aceitá-lo a partir de sua cultura e
suas tradições”.
A visão idílica do paraíso terrestre, que precedeu os Descobrimentos,
reaparece no documento dos entusiasmados bispos ao descrever as
culturais amazônicas como dotadas de uma superioridade intrínseca,
“A vida na Amazônia é integrada e unida ao território, não existem
separações entre as partes. Esta unidade compreende toda a existência: o
trabalho, o descanso, as relações humanas, os ritos e as celebrações.”
“Tudo é dividido, os espaços privados – típicos da modernidade – são
mínimos. A vida é um caminho comunitário onde as competências e as
responsabilidades são divididas e codivididas em função do bem comum.
Não há lugar para a ideia de um indivíduo destacado da comunidade ou do
seu território.”
Diante de tanta perfeição, mais imaginária do que real como sabe
qualquer um com vivência próxima do assunto, o papel da Igreja é bater
tambor para o “Deus Pai-Mãe”, curvar-se à “experiência cósmica que pulsa
nas famílias” nativas e outras propostas deslumbradas.
Para Urieta, o documento constitui “um ataque aos fundamentos da Fé e
de um modo que até agora se considerava impossível. Deve portanto ser
rejeitado com toda firmeza”.
Outro cardeal alemão, Gerhard Müller, ex-prefeito da Congregação para a Fé, pega um pouco mais leve.
Ao contrário de seu quase xará, Brandmüller, ele não é da “gangue dos
quatro”, os cardeais que contestaram a Amoris Laetitia, o documento
mais divisivo do papado de Francisco.
Acha o documento amazônico “confuso, ambíguo, errôneo, perigoso”.
Além de repleto de demonstrações de “uma especial lealdade ao papa” que
atingem o nível de bajulação.
O motivo da rejeição é o mesmo: as heterodoxias teológicas que
produzem a designação da Amazônia como um “locus epifânico”, onde “se
vive a fé e mesmo uma fonte peculiar da revelação de Deus”.
Por que não incluir na lista a savana africana, a tundra siberiana ou os Andes, entre outros lugares de prodígios naturais?
As questões doutrinárias envolvidas no próximo sínodo são fundamentais para aqueles que seguem a religião católica.
Para quem tem um maior distanciamento, impressiona também a repetição de conceitos batidos, antiquados e ingênuos.
Há muito tempo a hierarquia católica não contribui com pensamentos
originais, apesar dos esforços bem intencionados, e até heroicos, de
papas como João Paulo II e mesmo Bento XVI.
Isso, claro, é resultado do movimento histórico de refluxo da religião cristã no mundo ocidental e não de deficiências pessoais.
A anemia intelectual dos “bispos amazônicos” também reflete a
desconfortável posição de religiosos sem o fogo da fé, a faísca da
experiência do divino, a transcendência da graça, a vivência do
miraculoso, a loucura do amor a Cristo, a doçura espiritual da devoção a
Maria.
Isso sem falar no total desprezo demonstrado pela religiosidade
popular dos povos amazônicos que não estão no nível de superioridade dos
nativos e persistem em cultuar a Deus, Nosso Senhor e Nossa Senhora de
Nazaré.
Como cascas vazias, católicos sem cristianismo, os chefes da Igreja agora cultuam árvores e espíritos e nem nisso são bons.
Qualquer ambientalista, antropologista ou tomador de Daime já disse há muito tempo tudo o que os bispos estão dizendo agora.
IRMÃO SOL
A história da Igreja está cheia de gigantes intelectuais, santos,
místicos ou loucos, que se dedicaram magnificamente às eternas questões
das relações Deus, homem e natureza.
Será que os bispos esqueceram do Cântico das Criaturas embora faça uns 800 anos que Francisco de Assis o escreveu?
“Louvado sejas, ó meu Senhor, com todas as suas criaturas/
especialmente o meu senhor irmão Sol/ o qual faz o dia e por ele nos
alumias”.
“Louvados sejas, ó meu Senhor, pela irmã Lua e as estrelas/ No céu as acendestes, claras, e preciosas e belas”.
Vale a pena ver de novo a íntegra.
E Bartolomeu de las Casas, o incansável defensor dos indígenas do
Novo Mundo, pregador dos direitos dos povos nativos que não vacilou nem
quando sua experiência de colonização sem escravização terminou com os
locais matando todos os espanhóis?
E José de Anchieta? Os senhores bispos se esqueceram de reler a Carta
de São Vicente, de 1560, ou a Informação da Província do Brasil para
nosso Padre – 1585?
“Todo o Brasil é um jardim em frescura e bosque e não se vê em todo o
ano árvores nem erva seca. Os arvoredos se vão às nuvens de admirável
altura e grossura e variedades de espécies. Muitos dão bons frutos e o
que lhes dá graça é que há neles muitos passarinhos de grande formosura e
variedade.”
O mundo que o erudito, detalhista e apaixonado Anchieta descreve já
se foi em grande parte: a prodigiosa Mata Atlântica que cobria um milhão
de metros quadrados do Brasil selvagem do século 16.
Os bem intencionados bispos que querem salvar a Amazônia do mesmo
destino, entregando em troca a religião católica, não vão conseguir
nada.
As questões envolvidas são infinitamente mais complicadas do que “ouvir o grito da Mãe Terra” e outros lugares comuns.
É mais provável que consigam apressar as placas tectônicas em inevitável rota de colisão no Corpo de Cristo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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