Deve ser extraordinariamente pesado para Lula convencer o público de que
é um "preso político" após a sentença que recebeu do eleitorado
brasileiro. Coluna de J. R. Guzzo na edição impressa de Veja
Quatro anos atrás, apenas quatro anos atrás, o ex-presidente Lula
estava no topo do mundo — ou, pelo menos, acreditava que não havia
ninguém acima dele no resto do planeta. Tinha sido presidente da
República, eleito e reeleito, por oito anos seguidos. Nesse período, por
uma razão ou outra, convenceu os grandes colossos do pensamento
político brasileiro e internacional de que seu governo havia sido um
fabuloso sucesso, e de que ele, pessoalmente, era um novo Stupor Mundi, o
“Espanto do Mundo” neste despertar do século XXI. “He’s the man”,disse
dele Barack Obama — ele é “o cara”. Outros altos lordes da cena mundial,
do secretário-geral da ONU ao Santo Padre o Papa, lhe prestavam
homenagem. Economistas, sociólogos e filósofos acreditavam que Lula
conseguira “avanços sociais” inéditos para o Brasil — uma combinação
rara de distribuição de renda, eliminação da pobreza e progresso
econômico. Tinha eleito sua sucessora Dilma Rousseff, uma nulidade da
qual ninguém jamais ouvira falar — e, mais ainda, conseguira o quase
milagre da sua reeleição, em 2014. Tinha sobrevivido a pelo menos um
escândalo gigante, o da corrupção em massa de parlamentares do mensalão.
Tinha descoberto o pré-sal e ia fazer o Brasil entrar na Opep. Tinha
construído um estádio bilionário para o Sport Club Corinthians Paulista.
Neste domingo, ao se encerrar a apuração do segundo turno da eleição
presidencial de 2018, Lula estava na lona — ou, se quiserem, continuava
na sua viagem rumo ao fundo do poço, que ele iniciou dois ou três anos
atrás e imaginou que fosse capaz de interromper com uma vitória
eleitoral milagrosa. Seu candidato, Fernando Haddad, foi derrotado por
um adversário que até seis meses atrás não existia na política
brasileira. Confirmou-se, no segundo turno, o que foi anunciado no
primeiro: Lula, hoje, é uma garantia de derrota para tudo o que aparece
ligado ao seu nome. Quer ganhar uma eleição? Mostre ao eleitorado, como
fez Jair Bolsonaro, que você é 100% contra Lula. Seu partido virou
picadinho. Sua reputação continua em ruínas, e só afundou mais com a
ação arruaceira do PT para tumultuar o pleito. Pior que tudo, Lula sai
das eleições no mesmo lugar onde estava quando entrou nelas: na cadeia,
cumprindo há sete meses uma pena de doze anos por corrupção e lavagem de
dinheiro. Após mais de trinta anos no centro das decisões, pode estar a
caminho de ser eliminado como uma força ativa na vida política do
Brasil.
O que aconteceu com Lula e com o PT em tão pouco tempo? É
extraordinariamente pesado para Lula, depois de usar um maciço sistema
de forças, pressões e dinheiro para convencer o público de que é um
“preso político” condenado sem “provas”, receber a sentença que ele
recebeu do eleitorado brasileiro: não, não queremos mais que você seja
presidente; queremos, isto sim, que você continue na cadeia. Está na
cara que em algum momento, entre as alturas de 2014 e o desastre da
eleição de 2018, alguma coisa deu horrivelmente errado. O que foi? Na
verdade, muitas coisas deram errado — ou, mais exatamente, quase nada
mais deu certo desde o momento em que, já no segundo governo Dilma, a
Justiça brasileira começou a investigar de verdade a corrupção no
governo. A Operação Lava-Jato foi um terremoto em câmera lenta. Continua
até hoje a mandar gente para a penitenciária, mas no início
praticamente ninguém acreditava que aquilo fosse dar em alguma coisa.
Nunca tinha dado. Por que iria dar agora?
Pior que estar errado é continuar errando, e nisso Lula tem se
mostrado insuperável ao longo de seus anos de desmanche. Não é tão
complicado assim entender o porquê. Um dos problemas do ex-presidente é
essa coisa de dizerem o tempo todo que ele é um gênio da política, um
cérebro com capacidade sobrenatural para sair ganhando de qualquer
desastre em que se mete. Falam assim os devotos, os admiradores
liberais, a mídia, o mundo e os adversários. A complicação é que o
ex-presidente acredita nisso tudo. Parece não compreender que, quando os
entendidos em política anunciam que Lula é capaz de voar, quem tem de
acreditar é a plateia, não ele. Mas Lula acredita — e, como não voa, só
pode mesmo acabar despencando no chão. Talvez ninguém tenha resumido a
situação tão bem quanto o senador eleito Cid Gomes, do Ceará, ao ser
confrontado com um pelotão de fiéis que gritavam “Lula, Lula”, logo após
o naufrágio no primeiro turno. “O Lula está na cadeia, babaca”.
Acontece que a Lava-Jato e o trabalho do juiz Sergio Moro, mais o
Ministério Público, a Polícia Federal e o TRF-4 de Porto Alegre,
acabaram, sim, dando em muita coisa — na verdade, jamais uma ação do
Judiciário brasileiro deu em tanta coisa. Eventualmente, com o tempo,
mostraram que o rei estava nu, ao provar que nos governos de Lula e de
Dilma a prática da corrupção superou a roubalheira de qualquer outra
época, talvez em qualquer lugar do mundo. Lula esteve entre os que não
acreditaram que a terra começava a tremer. Estava errado.
Sua principal conquista, hoje, se resume a sair um dia da prisão —
pouca coisa para quem já esteve na primeiríssima classe da vida. O fato é
que o ex-presidente não soube reagir quando começou a sofrer derrotas, e
a melhor demonstração disso é que não quis, em nenhum momento, admitir
que tinha sido derrotado em alguma coisa. Em vez disso, e de pensar com
seriedade nas causas de seus problemas, resolveu embarcar num cruzeiro
de ilusões. Problema? Que problema? No primeiro tombo complicado, no
episódio do Mensalão, começou dizendo que tinha sido “apunhalado pelas
costas” e que o povo merecia “desculpas” — mas, um minuto depois de ver
que ia escapar do desastre a preço de custo, voltou atrás e passou a
jurar que não havia acontecido nada de errado, imaginem só que absurdo.
Daí em diante, nunca mais acertou o passo. Como se livrou do primeiro
desastre, achou que iria se livrar de todos — só que, na vida real, não
estava se livrando de nada. Estava apenas aumentando o tamanho do buraco
em que tinha se enfiado.
A sequência é bem conhecida. Lula errou horrendamente quando escolheu
Dilma para guardar sua cadeira de presidente por quatro anos. Errou de
novo quando ela não quis sair e inventou de ser reeleita; em vez de
exigir que o “poste” fosse embora para que ele próprio se lançasse
candidato à Presidência, como planejava, fez de conta que estava tudo
bem. Seguiu-se, daí, a maior calamidade que Lula e o PT poderiam esperar
— Dilma foi um desastre ainda pior depois da reeleição, e tanto ele
como o partido ficaram olhando, sem fazer nada, enquanto a grande
“gerente” mandava tudo para o espaço. Quando o povo foi para a rua, em
multidões cada vez maiores, Lula e o PT decidiram que não estava
acontecendo nada; era só um bando de “coxinhas” fazendo barulho no
domingão. Quando perceberam, enfim, que aquilo tudo estava simplesmente
levando ao impeachment de Dilma, perderam de novo. Lula tentou ser
ministro — foi barrado pela Justiça, que a essa altura já estava
roncando à sua volta. Mudou-se para Brasília, imaginando que tinha poder
para virar a votação no Congresso a favor de Dilma. A sucessora acabou
deposta por quase três quartos dos votos.
Não passou pela cabeça de Lula nem pela dos dirigentes do PT, a essa
altura, que a situação toda estava indo para o saco. Ao contrário:
acharam que a grande ideia era “ir para cima” e balançar ainda mais o
barco. Inventou-se a lenda do golpe — não colou. Partiram para uma briga
com a opinião pública, do tipo “ou eu ou ele”, entre Lula e Sergio
Moro, o “juizinho do interior” — deu Moro, disparado. Em vez de montar
uma defesa jurídica profissional, técnica e voltada para a eficácia,
Lula decidiu transformar seu processo numa “causa política”, sonhando
que “a população” fosse bloquear o trabalho normal da Justiça e salvar o
seu couro — apesar de todas as provas de que “a população”, já fazia
muito tempo, estava pouco ligando para o que lhe acontecia. Ficou
apostando em safar-se com trapaças jurídicas miúdas, ou com traficâncias
no submundo dos tribunais superiores, ou com acertos secretos na
“segunda turma” do STF — capaz, no imaginário petista, de salvar da
cadeia não só Lula, mas quem Lula mandasse ser salvo. Não deu em nada.
Com ele já trancado em sua cela em Curitiba, montou-se a fantasia de um
acampamento gigante em torno da prisão, que ali ficaria “até Lula ser
solto”. No seu momento de maior esplendor, o cerco reuniu 500 pessoas.
Chegou a ficar com setenta. Há muito tempo não existe mais. A “convulsão
social” com “derramamento de sangue” prometida pelo alto-comando do PT
jamais apareceu. “A ONU” mandou soltar Lula, anunciou-se através do
mundo. Ninguém ligou — possivelmente nem a ONU.
A última tentativa de virar o jogo, com a campanha eleitoral, teve o
seu desfecho neste domingo, com o resultado que se sabe. Como em quase
tudo o que tem acontecido com Lula e o PT no passado recente, foi uma
sucessão de erros, cegueira e ilusões. Começou com a alucinação de que
Lula, preso e condenado em duas instâncias a doze anos de xadrez, seria o
candidato do partido. Daí em diante só piorou. Em nenhum momento o
ex-presidente tentou entender por que, afinal de contas, tanta gente
estava querendo votar em Jair Bolsonaro. Nem ele nem o seu sistema de
apoio se interessaram em pensar um pouco nas propostas do adversário — e
muito menos em propor alguma alternativa a elas. Ficaram repetindo, do
começo ao fim, a mesma lista de acusações a Bolsonaro, apesar do
evidente pouco-caso da maioria do eleitorado em relação a todas elas —
homofobia, racismo, fascismo, elogio à tortura, desprezo à mulher,
defesa do porte de armas, intenção de criar uma ditadura no Brasil.
Deram a impressão de não ter percebido que nada disso tirou um voto
sequer do concorrente. Nem mesmo notaram a realidade básica de que não
podiam tratar como “inimigo”, ou “ameaça”, um candidato que não era nem
inimigo nem ameaça para os 50 milhões de brasileiros que votaram nele no
primeiro turno. Onde está o “gênio político” que não prestou atenção a
nenhuma dessas coisas?
Lula e o PT tiveram uma ilusão fatal, também, com a sua
celebradíssima capacidade de “transferir votos” e de transformar
“postes” em governantes vitoriosos. Há transferência a favor, claro, mas
hoje em dia o problema é que Lula, ao mesmo tempo, transfere voto
contra para os seus candidatos; ganha um, perde dois. Já transferiu com
sucesso votos para Dilma e para o próprio Fernando Haddad, presenteado
com a prefeitura de São Paulo. Mas aí era outro Lula. Já há dois anos,
na última vez que se pôde medir seu condão de transferir votos, não
transferiu nada — não funcionou, aliás, com o mesmo Haddad, que perdeu a
prefeitura no primeiro turno para um adversário que nunca tinha
disputado uma eleição na vida. O PT, nas eleições municipais de 2016,
foi moído nas urnas. Lula, a essa altura, era um Lula a caminho da
cadeia; já não conseguia eleger postes, como não elegeu agora. A ficha
demorou a cair. A votação do primeiro turno avisou: “Fora, Lula”. E qual
a primeira coisa que Haddad fez logo depois de ter ouvido esse recado?
Foi visitar Lula na cadeia.
Houve uma tentativa aparentemente desesperada, aí, para virar a
casaca — mas já era tarde demais. Os cérebros estratégicos do partido
acharam melhor, no segundo turno, que Haddad se transformasse num
personagem de ficção, inexistente até a véspera. Queriam que ele
aparecesse, de repente, como um sujeito que não tinha nada a ver com
Lula. Tiraram o nome do ex-presidente da campanha, e sumiram as máscaras
com o rosto de Lula sobrepondo-se ao de Haddad. O vermelho foi
suprimido da paleta de cores do PT — tudo ficou subitamente
verde-amarelo. O programa do candidato foi mudado: apagaram alguns dos
pontos mais claramente suicidas e instruíram o até então
Lula-Haddad-Lula-Haddad-Lula-Haddad a fazer uma cara de Fernando
Henrique. Perda de tempo. Galinha que anda com pato, como ensina o dito
popular, acaba morrendo afogada. Haddad andou tanto com Lula que acabou
entrando na água com ele. Entrou vestido de verde-amarelo, mas a roupa a
essa altura não adiantava mais nada. Também não adiantou fingir que era
Haddad.
Em seu desabamento progressivo, Lula, com a ajuda empolgada do PT,
quis representar o papel de mártir. Péssima ideia. Brasileiro, no fundo,
não gosta de gente que está na cadeia. Não acha que as penitenciárias
estejam cheias de injustiçados. Acha o contrário — que há muita gente
culpada do lado de fora. Para a maioria do eleitorado, Lula não é
vítima, nem preso político. É só um político ladrão que foi condenado —
como deveriam ser nove entre dez dos que continuam soltos. Não é um
julgamento sereno, mas é assim que a massa pensa e continuará pensando, e
vai apenas perder seu tempo quem quiser convencê-la do contrário.
Revela muito da decomposição política de Lula e do PT o fato de terem
achado que uma cela de cadeia é um lugar capaz de despertar admiração no
povo ou de servir como centro de comando de uma campanha eleitoral.
A vida é cheia de surpresas, como acaba de mostrar a eleição de
Bolsonaro, e coisas que nunca aconteceram antes sempre podem acontecer
um dia. Lula e seu complexo de forças, mais a quase totalidade dos que
se dedicam a explicar o que ocorre na política brasileira, precisariam
recomeçar do zero para ter alguma chance de entender, algum dia, o que
está havendo com o Brasil de 2018 — e o que pode vir pela frente. Há
várias maneiras de fazer isso, mas uma delas, certamente, é admitir que
existe neste país uma imensa quantidade de gente inconformada com quase
tudo o que o poder público lhe serviu nos últimos trinta anos, de José
Sarney a Michel Temer. Os políticos perderam o controle das ruas — e
para a esquerda, que sempre imaginou que a rua estaria do seu lado, a
perda é uma calamidade ainda maior. O fato real é que Lula e seu partido
não têm mais nada a ver com a massa, como não tinham nas manifestações
de 2015 e 2016. Quem leva gente à praça pública, hoje, é o presidente
eleito Jair Bolsonaro. Enquanto essa realidade não for encarada com
firmeza, ele continuará sem competição verdadeira.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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