Do
jornal Público (Portugal): Frederico Lourenço passou dos clássicos
gregos para a Bíblia grega, tarefa grandiosa que faz emergir uma série
de questões. É a mais completa tradução da Bíblia que alguma vez foi
feita. Diz que não disfarçou as frases incômodas, não limou as arestas,
nem as passagens misóginas e homofóbicas. É uma Bíblia que "não esconde
as realidades inconvenientes".
Frederico
Lourenço lançou-se sozinho num empreendimento que, pela sua grandeza,
foi muitas vezes resultado de um trabalho de equipa: a tradução, do
grego, dos 80 livros da Bíblia, o Velho e o Novo Testamento, oferecendo a
mais completa tradução da Bíblia que alguma vez foi feita em língua
portuguesa. O primeiro volume, contendo os quatro evangelhos, de Mateus,
Marcos, Lucas e João, acaba de ser editado. A este seguir-se-ão mais
cinco volumes, com os quais se completará a tradução integral da Bíblia
Grega.
E,
de repente, este trabalho grandioso veio colocar questões e trazer ao
conhecimento público aspectos e circunstâncias históricas da tradução,
da recepção e das várias versões da Bíblia que ficaram quase sempre
reservados aos eruditos dos estudos bíblicos. O ofício catequético da
Igreja Católica nunca favoreceu um conhecimento da Bíblia que não fosse a
do Livro onde se derramou, para sempre, a palavra imutável de Deus. A
Bíblia como um livro plural, não homogéneo, polifónico, escrito ao longo
de um arco temporal que perfaz mais de mil anos, em várias línguas e em
diferentes estados da mesma língua, irredutível a uma unidade a não ser
pelas leituras e interpretações fixadas no cânone doutrinário, eis uma
imagem e uma concepção que a confessionalidade consegue esconder ou
anular.
Frederico
Lourenço não é padre nem teólogo, é um helenista e tradutor de alguns
clássicos gregos (são bem conhecidas as traduções que fez da Odisseia e
da Ilíada, que a editora Cotovia publicou); não faz parte de nenhuma
Igreja, é um universitário (da Universidade de Coimbra), tem formação
filológica completada com outras vocações.
E
isso mesmo faz ele questão em sublinhar, ao responder a uma questão que
lhe pusemos: “Parto de um pressuposto não-teológico, mas ao mesmo tempo
de uma predisposição de simpatia em relação ao cristianismo. Do mesmo
modo que, na tradução do Antigo Testamento, parto de uma predisposição
de simpatia em relação ao judaísmo. Mas essa simpatia não me inibe de
fazer introduções, notas e comentários ao texto bíblico que focam de uma
maneira desassombrada as contradições que são inerentes aos textos, as
suas discrepâncias, os seus anacronismos mal disfarçados, a sua
incompatibilidade com algumas realidades históricas.”
Porquê do grego?
Leia-se,
neste primeiro volume, a apresentação, a introdução e o extenso
aparelho de notas para percebermos imediatamente que esta Bíblia é obra
de um tradutor e de um estudioso que trata o texto sagrado como tratou
os textos profanos. Falando-nos sobre isso, ele esclarece: “Não há nada
de ofensivo para católicos na minha tradução da Bíblia, mas há uma clara
linha não confessional que assumi de forma consciente. Não me deixei
condicionar por nada daquilo que são as convenções aceites na tradução
do Novo Testamento, quer católicas, quer protestantes. Ative-me apenas à
materialidade linguística do texto. Não disfarcei as frases incómodas,
não limei as arestas, não escondi realidades inconvenientes.”
“Na
minha tradução lê-se ‘escravos’ e não ‘servos’ ou ‘criados’; também não
disfarcei as passagens misóginas e homofóbicas de Paulo. Mas, por outro
lado, as traduções existentes são desnecessariamente androcêntricas,
sobretudo em passagens em que a palavra ‘homens’ significa, na
realidade, ‘pessoas’. Acho que a mais-valia da minha tradução é
justamente o facto de estar fora do catolicismo, mas não contra o
catolicismo.” Demos um exemplo eloquente: S. Jerónimo, autor da tradução
latina da Bíblia que se tornaria a Vulgata aprovada pela Igreja,
traduziu com a palavra “peccatum” uma das palavras mais comuns e
importantes da liturgia, uma palavra grega que significa “erro”. E é
assim que Frederico Lourenço a traduz muitas vezes (não de maneira
sistemática, por razões que ele explica na Introdução). “Erro”, em vez
de “pecado”, não é certamente assimilável à liturgia da Igreja Católica.
Esta
tradução, explica, “é um trabalho de rigor, de literalidade, de
captação do sentido original da forma mais próxima possível, tenta dar a
ler o grego tal como ele é”. Mas ela tem um efeito já bem visível nos
primeiros actos públicos da sua recepção, na medida em que nos obriga a
fazer perguntas e a pedir esclarecimentos sobre aspectos que quase nunca
emergem na transmissão corrente do texto bíblico. A primeira pergunta
que o público leigo fez foi esta: porquê a tradução de uma Bíblia
integralmente grega? Afinal, em grego não foram escritos apenas os
livros do Novo Testamento e uns poucos livros – sete, ao todo – do
Antigo Testamento? Tudo o resto, que é muito, não foi escrito em
hebraico? Porquê fazer a tradução de uma tradução, isto é, a tradução da
tradução grega dos originais hebraicos? Para responder a esta pergunta é
preciso contar a história da Bíblia Grega, tal como ela nasceu no
Egipto, na cidade de Alexandria, no século III a.C.
Essa
história (que Frederico Lourenço narra na Apresentação) foi conhecida
através de uma carta que data de cerca do ano 100 a.C., enviada por um
tal Aristeas ao seu irmão Filócrates – carta que chegou até nós graças
às citações que dela foram feitas por, entre outros, Fílon de Alexandria
e Santo Agostinho. Por ela, ficou-se a saber que 72 sábios judeus – daí
a denominação "Bíblia dos Setenta ou Septuaginta") foram convidados
pelo rei Ptolemeu Filadelfo para traduzir em grego os livros da Lei, ou
Torah (ou seja, o Pentateuco, os cinco primeiros livros). Essa tradução
promovida pelo rei Ptolemeu respondia às necessidades e exigências da
comunidade judaica de Alexandria, que não conhecia a língua hebraica. O
que aconteceu em Alexandria é geralmente considerado um facto
extraordinário, porque mostra o encontro da cultura helénica com o
património do judaísmo. A fé bíblica e o pensamento grego: este encontro
evoca a mais ampla e profunda experiência da cultura ocidental,
indicada geralmente pelo nome de duas cidades, Atenas e Jerusalém.
A
Bíblia Grega, para além dos livros do cânone hebraico, integra também
as obras deuterocanónicas e algumas que não fazem parte do cânone
católico. A Septuaginta não foi uma (a primeira, aliás) entre muitas
outras traduções da Bíblia, já que teve um papel importantíssimo para a
Igreja das origens, nos primeiros séculos do cristianismo. O Novo
Testamento usou esta tradução para as suas citações bíblicas e
transmitiu-a à posteridade. A Bíblia Grega era a Bíblia da Igreja
cristã. Até entrar em cena a Vulgata latina de S. Jerónimo, todas as
traduções do Antigo Testamento eram baseadas não na Bíblia hebraica, mas
na Septuaginta, que Santo Agostinho considerou inspirada (a inspiração é
um conceito teológico que se refere às obras dos homens – neste caso,
as Escrituras – que receberam uma supervisão especial do Espírito Santo,
de modo a exprimir a revelação de Deus). Importa dizer que não nos
chegou o texto original de onde foi feita a tradução pelos setenta
sábios judeus, a chamada "Vorlage" (uma palavra alemã), e que o texto
grego ajudou muitas vezes a reconstruir o texto hebraico original.
O sagrado e o profano
Jerónimo
introduziu o conceito de hebraica veritas, a verdade hebraica, que
significou um programa de correcção dos textos latinos correntes (e
sujeitos a traduções adulteradas) com base no texto hebraico. Agostinho,
pelo contrário (e este foi um motivo da importante discussão que teve
com Jerónimo), defendia o texto grego. A polémica questão da helenização
da Bíblia, que tem o seu motivo mais forte e inaugural na Bíblia dos
Setenta, atravessa os séculos e chega até nós. Em França, Henri
Meschonnic traduziu alguns livros da Bíblia com o explícito propósito de
“des-helenizar” a Bíblia. Para ele, a versão grega dos Setenta não é
concebível como um texto judaico, escrito por judeus e para judeus
inseridos num meio judeu. No fundo, ele não aceita o grego como língua
bíblica e toma partido pelos textos hebraicos, os textos massoréticos.
Referi
brevemente o exemplo de Meshonnic porque se trata de um tradutor (e de
um importante teórico da tradução e da literatura, já falecido) que deu
origem a fortes polémicas, mostrando como neste território bíblico se
erguem por todo o lado campos de batalha. Não se julgue, pois, que a
tradução da Bíblia Grega por Frederico Lourenço é um passeio –
grandioso, é certo – por campos pacíficos e harmoniosos.
Para
já, podemos afirmar que ela tem um efeito muito importante e altamente
meritório: sendo feita por um universitário helenista e tradutor da
literatura grega, exibe um frutuoso campo de colaboração e de
coincidência entre os estudos clássicos e os estudos da Bíblia, entre a
filologia dos textos sagrados e a filologia dos textos profanos. Deste
modo – e todo o aparato crítico das notas, dos comentários e das
introduções confirmam e reforçam esta perspectiva – Frederico Lourenço
afasta aquela ideia muito catequista, muito apologética, muito subtraída
a qualquer démarche crítica, de que a Bíblia é um supertexto, ou um
texto que está acima de todos os textos, para além da materialidade
textual e da condição linguística e literária, para além de todas as
investigações históricas, filológicas e arqueológicas. Sabemos como esta
ideia, que só quer ver no texto bíblico uma verdade fixada como livro
único e eterno que transcende a sua materialidade e a história das suas
leituras, das suas traduções e dos seus usos, foi mesmo responsável por
pesadas restrições à leitura da Bíblia e à sua tradução em “línguas
vulgares”.
Frederico
Lourenço não quis apagar o texto para restituir apenas o sentido, como
fizeram os tradutores da tradição cristã. Mas também não quis fazer o
oposto: uma tradução de escritor, uma “tradução poética”, como
Meschonnic, obcecado pelo ritmo e pelo significante. À questão que lhe
colocámos sobre o carácter literário da tradução da Bíblia respondeu:
“Não vejo a tradução de obras como a Odisseia ou a Bíblia como acto
literário. Nunca tomo nenhuma opção só para o texto ficar bonito em
português. Às vezes o texto até fica estranho: isso vale tanto para as
minhas traduções de Homero como do Novo Testamento. Mas se as frases são
estranhas no original, a tradução tem de espelhar isso. Sou contra
passar todas as rugas a ferro.”
Outro
efeito da tradução da Bíblia por Frederico Lourenço é o de mostrar que
as traduções sucessivas não se anulam, mas acrescentam-se, ao longo de
um processo que começou com a Bíblia Grega; e que a Bíblia não existe
senão pela história das suas traduções, por mais que essa história surja
obliterada pelos guardiães de uma concepção da verdade bíblica como
palavra refractária a toda a tradução.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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