MEDIÇÃO DE TERRA

MEDIÇÃO DE TERRA
MEDIÇÃO DE TERRAS

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Ovomóvel


Tatiana Mendonça
A TARDE
Antônio Bispo, 50, atende a freguesia em Brotas - Foto: Lúcio Távora | Ag. A TARDE
Antônio Bispo, 50, atende a freguesia em Brotas
Aquela musiquinha do plantão da Globo, que anuncia mortes, desastres, mudanças repentinas, em Salvador não assusta mais ninguém. Há alguns meses já se sabe que é só o carro do ovo passando. A qualquer hora, em qualquer bairro, a famosa vinheta precede o anúncio da venda de 30 ovos de galinha por apenas R$ 10. É isso mesmo. Ovos graúdos, ovos selecionados. E eles vão repetir. À exaustão. Onipresentes, tornaram-se parte do cotidiano da cidade, mobilizando paixões.
Os carros passaram a circular com mais frequência e abrangência, digamos assim, em meados deste ano, como uma resposta à crise econômica e ao desemprego. Foi assim com Daniel, 32, que não quis dizer o sobrenome, e Antônio Bispo, 50. Todos os dias eles rodam com uma Kombi cheia de ovos no bairro de Brotas.
Daniel vai dirigindo e dando o troco, Antônio atende os fregueses. Os dois ficaram desempregados, e aí o jeito foi esse. Daniel, que trabalhava como motorista, viu que muita gente estava ganhando a vida com ovo e resolveu tentar. Vendeu um Gol 2007 para comprar a Kombi. “Quis trabalhar para mim, e está dando certo. Dá para tirar o pão de cada dia”.
Eles contam que começam a rodar às 9h, “para não acordar ninguém”, e vão até as 17h, com direito a intervalo para o almoço. É isso de segunda a sábado. Por dia, chegam a vender 10 caixas. “Já houve o tempo de serem 15, 12...”. Cada caixa tem 10 placas, faça aí as continhas. “Não se ganha muito, na verdade, é só mesmo a cesta básica”, diz Antônio, que trabalhava como frentista. Para o freguês que aparece ele também oferece polpas de frutas, mas as bichinhas ficam mais  enjeitadas.
Quem se aproxima para comprar é só elogios pela praticidade e preço. “O pessoal apoia, porque a gente está trabalhando honestamente. Às vezes reclamam é quando a gente passa com o volume baixo, porque aí não escutam e perdem”, diz Daniel.
O analista de tecnologia da informação Yuri Magalhães, 30, é um legítimo representante dos amantes do carro do ovo. Quando escuta a vinheta já se anima e só desce para comprar uma quantidade “humilde”. Geralmente, são três placas, somando 90 ovos. Conta que a família inteira é chegada no ovo – por dia, são cerca de 24 (ele sozinho come oito no almoço).

Yuri, 30, deixa dinheiro com o porteiro para não perder sua "placa" (Foto: Lúcio Távora | Ag. A TARDE)
Outro dia, Yuri fez sucesso no Facebook postando uma foto de uma caixa com nada menos que oito placas de ovos, todas dos carros, claro, porque em mercado ele nem lembra mais a última vez que comprou. Quando não está em casa, faz questão de deixar o dinheiro com o porteiro para “garantir” a sua placa. E não está só. “Geralmente vejo outras notas lá de R$ 10, que o pessoal já deixa para isso mesmo”.
Yuri jura que o barulho dos carros nunca o incomodou, nem mesmo quando o acorda do cochilo de domingo à tarde. “Outro dia, o carro parou a música tradicional pela primeira vez. Os torcedores do Vitória estavam vendo o jogo num bar aqui perto, aí ele passou com a música do Bahia. Ficou meia hora nisso. Achei engraçado”.
Galinha escravizada?
Do outro lado do ringue está a estudante Patrícia Andrade, 33, que ODEIA o carro do ovo (vamos deixar em maiúscula mesmo, para fazer-lhe justiça). Por suas contas, há mais ou menos dois meses os carros vêm “articulando a cidade inteira”. Reparou o espraiamento pelos comentários de grupos no WhatsApp, mas antes disso já sofria só.
Moradora da Pituba, conta que o carro faz a “primeira passagem” às 8  da manhã, com um som “insuportavelmente insuportável”. Escolhe a porta do seu prédio para uma parada estratégica de 20 minutos. Depois, volta no horário do almoço, entre as 12h30 e 13h, e depois novamente, às 17h. “Além disso, tem o carro da água, do gás, o moço da vassoura, do peixe, do camarão-pistola. É muita poluição sonora”, diz Patrícia, que está estudando para fazer concurso público. “Mas o carro do ovo é o pior, porque é o tempo inteiro”.

Patrícia, 33, já tornou-se conhecida entre amigos por odiar o carro do ovo (Foto: Lúcio Távora | Ag. A TARDE)
Ela diz que nunca desceu para comprar o ovo, “para não dar essa ousadia”, mas uma vez a irmã a traiu e subiu com uma placa. Ela comeu, não pode negar, mas achou a qualidade ruim. “É bem ralo. Acho uma economia de palito”. A única vez que Patrícia reparou uma diminuição do  som do carro do ovo foi quando o motorista precisou usar o celular. “Quando terminou a ligação, ele aumentou a música novamente. Quer dizer, aí ele se sentiu incomodado”.
Ela questiona não só a poluição sonora, mas a procedência dos ovos,  as condições de armazenamento e a legalidade da atividade. “Fico pensando: de onde vem essa galinha? É uma galinha escravizada? Deve ter uma cloaca muito boa!”, ri, antes de falar sério. “Entendo que as pessoas precisem trabalhar, mas há questões de saúde pública aí. E outra, o cara do mercadinho, que paga impostos, vai ser penalizado?”.
Apesar disso, ela garante que nunca ligou para nenhum órgão de fiscalização, para não ser a responsável por “desempregar ninguém”. Ainda assim, já sofre bullying. Seus amigos e parentes, sabendo desse seu sentimento pelos carros do ovo, enviam fotos com dedicatória de tudo que é lugar de Salvador. Eles vêm afetando até sua vida amorosa. “Meu paquerinha outro dia falou: ‘Olha, o carro do ovo está passando aqui. Você quer quantos? Vou te dar um buquê de ovos!”.
Recorde de produção
O Brasil registrou no segundo trimestre deste ano a maior produção de ovos de galinha desde 1987, quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) começou a série de pesquisas. Foram produzidos 757,51 milhões de dúzias, 5% a mais do que o registrado no mesmo período do ano passado. São Paulo, Minas Gerais e Paraná foram os maiores produtores nacionais. Na Bahia, houve uma queda de 2,3% na comparação entre os dois períodos.
Os dados nacionais explicam a queda no preço do produto. Por aqui, muitos dos ovos vendidos são importados de outros estados. Num depósito em Itapuã, eles chegam de longe, mais especificamente de Primavera do Leste, no Mato Grosso, a maior unidade granjeira do país, com seis milhões de habitantes, quer dizer, galinhas.
Outro depósito na Cidade Baixa recebe os ovos do Espírito Santo, de Mato Grosso e do sul da Bahia. Sérgio Henrique Oliveira está à frente do negócio, que funciona há mais de 30 anos. Ele conta que com essa história de carro do ovo, o faturamento cresceu 30%. “Com a crise, as pessoas passaram a apostar no ovo, que é um produto com giro alto. Era algo que já existia nos bairros mais populares. As kombis passavam vendendo frutas e ovos. Como com ovo o rendimento é maior, muitos abandonaram os outros produtos”.
Sérgio diz que no seu depósito, cada placa de ovos custa em média R$ 8 (ele fez uma conta para a gente se situar, já que só vende as caixas fechadas). “A margem de lucro dos carros é em torno de 20%”, avalia. Sérgio também lembra que os produtos que vende possuem selos de inspeção federal e estadual e acredita que os ovos vendidos pelos carros são novos, justamente pela rapidez com que são vendidos. “Devem ser produtos com três, quatro dias de produção”.
Os outros depósitos que abastecem os carros do ovo de Salvador ficam na Ceasa, na CIA-Aeroporto, e em Valéria. Paulo Otávio, 26, sobrenome não revelado, dono de um dos seis galpões do bairro, gaba-se de que Valéria abastece “90%” dos carros que vendem o produto em Salvador. “É tudo parente, vizinho...”. Os ovos chegam ao seu galpão diretamente de Entre Rios, onde está a maior granja do estado, duas vezes por semana.
Hit no pen drive
Paulo era motorista, mas resolveu investir no próprio negócio. Abriu o depósito e começou a rodar com o carro na Pituba e na Barra há oito meses. A música, ele conseguiu com Edmundo Pereira, 42, que cobra R$ 30 para copiar a gravação para o pen drive. Ele reparou que os vendedores tinham que ficar repetindo aquela fala e quando o freguês chegava, paravam para atendê-lo. Pensou que seria muito mais prático se o anúncio fosse gravado, para não se ficar “cansando a garganta”.
No pequeno estúdio de casa, também em Valéria, Edmundo produziu no ano passado a gravação que virou hit. Também foi sua a ideia de colocar uma música evangélica para acompanhar. Só depois veio o plantão da Globo. Ele conta que a música gospel sai mais. “A do plantão, geralmente, é para anunciar coisa ruim, né?”, ri.
Edmundo trabalha como instalador de antenas e já perdeu as contas de quantas gravações repassou.  A quem compra faz o pedido de que não deixem copiá-la de graça. E conta que em breve irá “lançar” a gravação de um novo anúncio, “o do peixe”. Das críticas, faz pouco caso. “Nem Deus agradou a todos”. Oremos.
Paulo conta que já chegou a ter cinco carros, mas agora está “só” com dois. Lembra com alegria dos tempos áureos em que vendia fácil 18 caixas por dia, mas diz que hoje, com a concorrência, está mais complicado. E se aborrece também com quem não respeita o trabalho, gritando de cima do prédio que vai descer para bater nele – ao que rebate: “Pois desça!”. Mas não pense que ele está desanimado. Seu desejo é pegar um carro maior e ficar velho nessa vida. “Acostumei”.
No dia que encontramos Paulo, ele estava apresentando o roteiro da Pituba para seu primo e a mulher, que resolveram aderir à frota do ovo. A prova de que o local era bom mesmo, como tinha prometido, foi que antes das três da tarde já tinham vendido todas as sete caixas que empilharam no porta-malas do carro – estoque zerado com uma freguesa que encostou e comprou cinco placas de vez.

Daniela, 34, acredita ser a primeira e única mulher no ramo (Foto: Lúcio Távora | Ag. A TARDE)
Desempregado, o casal fez um acordo com Paulo de pegar as caixas de ovos emprestadas e, com as vendas, pagá-las. Paulo também deu o canal para pegarem a música que alardeavam na corneta. “Quero uma de louvor agora, porque a gente é cristão”, diz Daniela Gomes, 34, que dirigia o carro e acredita ser a “primeira e única” mulher na atividade. Eles moram em Campinas de Pirajá e começaram a rodar no começo do mês. Gastam cerca de R$ 50 por dia com gasolina, mas estão  animados com a nova fonte de renda.
Enquanto percorriam a Pituba, se depararam com outro carro do ovo. Como um código de ética velado, saíram depressa em direção a outra rua. Silviano Silva, 38, ficou só de cá espiando. Ao lado do compadre, inaugurou nova modalidade no ramo, o carro do ovo que, ao invés de andar, fica parado. Não algum tempo, todo o tempo. “Eles passam tão rápido que na hora que o pessoal desce, já foram embora”, diz, com um arzinho de superioridade. Silviano trabalhava como porteiro e mototaxista, mas aí trocou o mototáxi pelo carro do ovo, por um convite do compadre e pelo dinheiro ser melhor. Eles dividem os turnos. E como o pessoal já sabe que vão estar ali, não precisam nem de música. “É mais fácil encontrar”.
Corrida do ovo
Os órgãos de fiscalização parecem brincar de corrida do ovo – aquela da colherzinha, sabe? – quando se trata de monitorar a atividade. Um vai passando a responsabilidade para o outro. A Secretaria Municipal de Ordem Pública (Semop) diz que não há regulamentação para este tipo de serviço e que as vistorias são feitas a partir de denúncias – inexistentes até o momento, segundo a Semop.
A secretaria preferiu passar o ovo para a Transalvador. “Em relação aos veículos citados, existem reclamações informais de que os carros estacionam no meio das ruas da cidade, causando transtornos a motoristas e pedestres, bem como estacionam nas calçadas, o que compete à Transalvador”. A assessoria também aproveitou a oportunidade para passar o ovo para a Vigilância Sanitária, vinculada à Secretaria da Saúde. “Outro fator importante é a questão das condições de armazenamento e manipulação do produto”.
A Vigilância Sanitária, por sua vez, diz que “se exime da responsabilidade de fiscalização da entrada,  trânsito,  comércio e  beneficiamento de produtos, subprodutos e derivados agropecuários no território baiano” e passou o ovo para a Agência Estadual de Defesa Agropecuária da Bahia (Adab), que seria responsável pela tarefa de “elaborar e executar os programas de promoção e proteção da saúde animal e vegetal, constituindo-se na autoridade estadual de sanidade agropecuária”. A Adab devolveu o ovo para a Vigilância Sanitária. Segundo a assessoria da Agência, o órgão só fiscaliza a indústria – o comércio varejista seria de responsabilidade da Vigilância Sanitária. Reparou o vazio?
Quem parece se aproximar mais da linha de chegada é a Secretaria Municipal de Urbanismo (Sucom), que começou a receber reclamações de pessoas incomodadas com o barulho dos carros do ovo em fevereiro deste ano. Inicialmente, chegavam a 60 por mês. Hoje, são cerca de 15.
Nesse período, foram realizadas operações que implicaram a apreensão de oito equipamentos de som (um deles foi a corneta de Paulo, ainda não recuperada). As denúncias de poluição sonora podem ser feitas pelo telefone 156.
A Transalvador, por sua vez, diz que frequentemente remove veículos estacionados de forma irregular, mas não há registros específicos relacionados aos carros do ovo (para saber, só mesmo indicando a placa). Ficou alguma pergunta sem resposta, Patrícia? Juramos que de nossa parte fizemos o possível.
Volta por cima
Em 1980 e 1990, muitas pesquisas associavam o consumo de ovo a doenças cardiovasculares, com a justificativa de que o alimento era rico em colesterol. Para felicidade geral da nação, o ovo foi absolvido pela ciência e  pode fazer parte das refeições sem culpas. A nutricionista Lídia Loyola explica que o colesterol dos alimentos não é o principal responsável pelas doenças cardiovasculares, e sim o consumo excessivo de açúcar, de gorduras saturadas e gorduras trans (aquelas das frituras e dos alimentos processados).
A prova máxima de que o ovo deu a volta por cima é que hoje é alimento quase obrigatório nas dietas de quem pratica atividade física. Lídia explica que os esportistas – profissionais ou amadores – têm, de fato, uma necessidade aumentada de consumir proteína, mas alerta que a ingestão excessiva pode desencadear processos alérgicos. “A exposição crônica, com doses elevadas e repetitivas, pode desenvolver alguma intolerância ou alergia em pessoas mais sensíveis”. Ouviu, Yuri?
O consumo de até quatro ovos por dia está liberado. “É um alimento bem  rico, de excelente qualidade”, diz Lídia. Em tempos ou não de crise, pode substituir a carne  do almoço, na proporção de um pedaço médio de 80 gramas de carne para aproximadamente dois ovos. Se animou? Capaz de o carro do ovo estar passando agorinha mesmo na sua porta. Vai comprar ou não vai? Corre, corre, minha freguesa!

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