'New York Times', 'Washington Post', professores universitários, irlandeses e escoceses: os motivos são diferentes, mas alguns parecem piada. Vilma Gryzinski:
“O
funeral da rainha será pago pelos contribuintes britânicos”. Parece
brincadeira, mas este é o título de uma reportagem do New York Times
sobre a morte de Elizabeth II.
E
se, livrem-nos os céus, Joe Biden viesse a passar para o estágio
espiritual durante o exercício de suas funções de chefe de Estado? Quem
pagaria? Uma listinha de crowdfunding? O solene enterro de John Kennedy,
com algumas cerimônias copiadas da antiga matriz, por acaso foi bancado
pela família milionária?
É
claro que as cerimônias fúnebres de uma monarca que tinha funções de
Estado têm que ser pagas pelos cofres públicos. E com a presença de
cerca de 500 representantes oficiais de países convidados não vai ficar
barato – uma projeção prevê que cada domicílio britânico entrará com a
prodigiosa quantia de cinco centavos de libra.
A
infantilidade de “cobrar” satisfações sobre a maneira como – e por
quanto – outro país homenageia suas personalidades públicas foi superada
pelo artigo no Times de uma professora de história de Harvard, Maya
Jasanoff, dizendo que a rainha “ajudou a obscurecer uma história cruenta
de descolonização cujas proporções e legados ainda precisam ser
adequadamente reconhecidos”.
É
difícil ter algo mais estudado – e “reconhecido” – do que o
colonialismo britânico, em todos os seus aspectos, inclusive os mais
brutais. Não há nada de “obscuro” a respeito. Da mesma forma que é bem
explícita a adesão voluntária de 55 ex-colônias, do Canadá a Tuvalu
(população: 11 800 habitantes), à Commonwealth, a Comunidade das Nações
que mantém o um elo comum com o antigo império onde o sol nunca se
punha.
Entre
esses países, o monarca britânico é chefe de Estado em 14. É possível
que a morte da rainha apresse o rompimento desses laços, como já
aconteceu com Barbados e deve acontecer com a Jamaica. Mas a “história
cruenta”, pela qual a rainha morta não pode ser responsabilizada, não
parece pesar mais do que o orgulho de continuar a ter uma ligação
profunda com a monarquia britânica.
Comparativamente,
a professora de Harvard foi comedida diante do que tuitou outra
acadêmica americana, Uju Anya. Poucas horas antes da morte da rainha,
quando o fim já estava evidente, ela disparou: “Soube que a monarca
chefe de um império ganancioso, estuprador e genocida está morrendo. Que
a sua dor seja excruciante”.
A professora de linguística aplicada, americana originária da Nigéria, conseguiu o que queria: aparecer.
Para
não perder a onda, ela tuitou que, pelas críticas sofridas, estava
sendo alvo de racismo – o que mais seria? Motivo: um vídeo de um grupo
de praticantes da dança irlandesa tradicional estava viralizando no
TikTok por mostrar cinco rapazes sapateando em frente ao Palácio de
Buckingham ao som de Another One Bites the Dust (mais um bate as botas).
Detalhe: o vídeo é do ano passado.
Uju Anya achou que os dançarinos estavam sendo tratados com bom humor, enquanto ela, pobrezinha, sofria críticas.
“Sou
uma mulher negra muito veementemente de esquerda que fala sobre
antirracismo, teoria crítica radical e direitos queer. Juntando tudo,
sou definitivamente o melhor alvo para o ódio das redes sociais”,
proclamou a professora.
Além
do argumento tolo, ela também estava mal informada. A maior ofensa à
rainha foi feita não pelo grupo irlandês, mas pela torcida do time
Shamrock Rovers, de Dublin, que cantou durante um jogo poucas horas
depois da morte rainha o refrão “Lizzie is in a box” – Elizabeth está na
caixa. Ou, obviamente, caixão.
Outra
torcida, do Celtics, da Escócia, levou faixas para um jogo dizendo
“Dane-se a Coroa” – de forma um pouco mais chula – e “Sentimos por sua
perda, Michael Fagan”. A referência ferina é ao homem que conseguiu
invadir o quarto da rainha no Palácio de Buckingham em 1982.
Escoceses
e irlandeses, tanto os da república que conseguiu a independência em
1949 quanto os da Irlanda do Norte, que continua a fazer parte do Reino
Unido, têm bons motivos históricos para hostilizar os ingleses,
considerando-se que foram anexados pela força ou por complexas redes
dinásticas. Hoje haverá protestos durante a visita do novo rei ao País
de Gales.
Ao
mesmo tempo, o sentimento separatista é forte, mas não dominante – a
Escócia votou contra a independência no plebiscito de 2014 – e mesmo
entre seus partidários se mistura com o respeito pela figura da rainha.
Como
ela morreu em seu castelo na Escócia, a primeira parte do grande ritual
fúnebre aconteceu lá, com o detalhe que foi a coroa da Escócia, muito
mais antiga do que a britânica, que ficou sobre seu caixão. Milhares de
escoceses acompanharam respeitosamente o féretro, com um único
incidente, o de um jovem que chamou o príncipe Andrew de “velho tarado”.
Não que ele não mereça o xingamento, mas era o lugar errado e pessoas
do público deram um jeito na situação.
Ele
e uma garota de cabelos verdes, com cartaz contra a monarquia, foram os
únicos casos de interferência policial, mas o Washington Post achou que
“a detenção de manifestantes nas ruas britânicas levantou novas
questões sobre a maneira como a Grã-Bretanha lida com críticas ao
soberano”.
Um
exagero, mais uma vez, ridículo. Na CNN, Christiane Amanpour – que é
filha de pai iraniano e mãe britânica – achou que o novo rei tinha que
lidar, imediatamente, com “questões do passado colonial”, inclusive
“reparações”.
Qual o poder do rei para pagar “reparações”? Zero.
Muitas
das críticas desse tipo têm a ver mais com os Estados Unidos do que com
uma monarquia antiga e, ainda, apreciada pelos principais interessados.
A questão de indenizações pela escravidão em território americano está
virando um dos assuntos centrais da turma “woke”.
Certamente
há exageros na intensidade da cobertura e dos elogios rasgados a
Elizabeth II e como não existe nada mais simbolicamente tradicional do
que monarquia, a esquerda acha que precisa ganhar pontos criticando
cabeças coroadas numa hora em que tantos exaltam a figura impecável da
rainha morta.
Mas
o que dizer de uma reportagem que chama Charles de “bebê chorão” e faz
conjecturas sobre sua vida sexual, como aconteceu na The Cut, a revista
moderninha do New York Times? Ah, claro que a revista correu para
publicar uma entrevista com a professora Uju Anya, a que desejou uma
morte bem dolorosa para a rainha.
Lacração rastaquera é de dar vergonha até aos mais fiéis admiradores do maior jornal do mundo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário