Por incrível que pareça, este sistema que à primeira vista é imutável e conservador, é o essencial para fazer do mundo britânico um exemplo de adaptação, não abrindo mão da sua relevância internacional. Luís Nunes dos Santos para o Observador:
A
história dos povos é uma viagem ininterrupta pela compreensão do
presente nas suas imensas dimensões. Há eventos históricos, assim como
pessoas individuais e coletividades, que marcam de forma pautada as
divisões do tempo, obrigando ao parcelamento em épocas e à organização
da informação dos acontecimentos variados no tempo curto, médio e longo,
numa narrativa descritiva e sequencial. É precisamente esta a definição
da humanidade para a “memória”.
É
por causa da “memória” que sabemos quem somos como indivíduos e como em
agregação com outros, formamos um coletivo nacional, porque a definição
de um país não se esgota nas suas fronteiras, é sobretudo e
essencialmente a sua memória (língua, cultura, religiões, Estado) e a
forma como a aceita e integra no seu presente e nas suas ações, servindo
de base para um tempo futuro que ainda está por chegar.
Por
isso é fundamental a memória para a projeção do ideal de nação, ter
consciência dessa memória permite fazermos escolhas, tomar decisões e
fundamentalmente, fazer uma reflexão sobre o nosso papel no meio que nos
rodeia. Saibamos nós ter capacidade para educar as novas gerações.
É
precisamente isto que podemos encontrar no Reino Unido, existe a clara
percepção dos vários papeis das instâncias do Estado. Não existe
vergonha nacional, mas sim entendimento. Alias é este entendimento que
permite que as tradições do Estado renovem o país e que impelem a
população ao progresso, às mudanças geracionais e às alterações da
sociedade.
São
estas tradições, materializadas pela monarquia constitucional, o
governo e as duas câmaras do parlamento que permitem a renovação na
continuidade, e que constantemente recusa a revolução política como
força de mudança, mas que pela constante adaptação por via reformista,
permite as revoluções sociais no tempo, sem tumultos que ameacem a
identidade nacional.
Talvez
seja exatamente por isto que a morte da rainha de um país estrangeiro,
com língua e cultura diferente da nossa, nos causa reconhecimento,
tristeza e perplexidade. As cerimónias a que assistimos são um exemplo
de dignidade de Estado, de reconciliação com o passado, de transferência
de testemunho, e renovação de eras e de memória.
Esta,
é talvez, a maior diferença entre Portugal e o Reino Unido. A nossa
história recente é pautada por sucessivas revoluções políticas, na sua
maioria revoluções das elites da sociedade cosmopolita. Estas revoluções
políticas praticamente não acompanharam as necessidades dos portugueses
e, portanto, as revoluções políticas não foram revoluções sociais no
sentido popular do termo.
Ou
seja, em Portugal, até 1974, o guerrear constante pelo controlo do
poder do Estado raramente teve como objectivo o serviço à nação. Ao
passo que a coroa e sobretudo Isabel II, através do sistema
constitucional, democrático e livre, deixou que a sociedade fizesse a
sua transformação por si própria, e desta forma foi a garantia da
estabilidade, da memória da nação e do equilíbrio necessário para se
focarem no essencial. A tríade constitucional do Estado Britânico
impediu devaneios tirânicos.
Por
incrível que pareça este sistema que à primeira vista é imutável e
conservador, é o essencial para fazer do mundo britânico um exemplo de
adaptação, não abrindo mão da sua relevância internacional.
É
factual a transformação da sociedade britânica, Isabel sobe ao trono,
numa sociedade ferida pelas mortes e destruição ocorridas na II Guerra
Mundial, e a partir dai transformou o seu império colonial na
Commonwealth, uma organização de 53 países amigos, de cultura e
interesses políticos comuns. Concretizando uma descolonização amigável.
Foi
a monarca que viu surgir as revoluções sociais e culturais dos anos 60.
Na música com o Beatles ou os Rolling Stones, com o surgimento de novas
formas de interpretar as ideologias, na transformação dos
comportamentos cívicos, sexuais e de movimentos pela paz. A verdadeira
abertura a um mundo novo, mais leve e desempoeirado.
A
transformação foi de facto enorme, e ela foi a figura conciliadora
entre um mundo antigo herdado da 1º parte do seculo XX e o mundo em
constante mudança da 2º metade deste século.
Um
ícone, um exemplo de serviço aos cidadãos, uma força que permitiu
manter a identidade nacional, no século da mudança mais rápida da
história, foram 96 anos de progresso constante, de equilíbrio
constitucional e liderança de uma das maiores nações do mundo que apesar
das transformações, mantêm influência no mundo – a prova é que milhões
têm assistido ao seu funeral e à ascensão do seu filho, Carlos III.
Nenhum comentário:
Postar um comentário