Posição radicais quanto ao poder das palavras criam equivalência entre dizer algo e fazer algo. Ou seja, legitimam que um ato agressivo seja resposta adequada a uma palavra entendida como agressiva. Patrícia Fernandes para o Observador:
Em LTI: a Linguagem do Terceiro Reich
(edição brasileira), o filólogo Victor Klemperer debruça-se sobre o
modo como o regime nazi usou a linguagem para afirmar e consolidar o seu
poder: “O nazismo se embrenhou na carne e no sangue das massas por meio
de palavras, expressões e frases impostas pela repetição, milhares de
vezes, e aceitas inconsciente e mecanicamente.” As observações de
Klemperer destacam o poder das palavras na nossa forma de pensar, com
claras consequências políticas, e refletem o argumento filosófico que
Charles Taylor cunhou com a expressão “tradição HHH”, por referência aos
filósofos alemães Herder, Hamann e Humboldt (Wilhelm, o filósofo, e não o seu irmão Alexander, naturalista).
Encontramos
nestes autores uma conceção da linguagem que se distingue do
entendimento filosófico tradicional: a linguagem teria uma função
constitutiva do mundo e não meramente descritiva ou representativa. Uma
vez que não podemos ter uma relação imediata (i.e., sem palavras) com o
mundo, a própria realidade seria linguística. Isto significa que as
palavras que usamos não são meras ferramentas para descrever o mundo ou
os pensamentos que ocorrem na nossa mente – pelo contrário, elas criam o
mundo, a realidade e o próprio pensamento. Em última instância, não
existe realidade para lá das palavras que empregamos.
Deste
pressuposto linguístico decorre uma dimensão política: se o mundo é
criado pela linguagem que usamos, ela não seria uma ferramenta neutra,
mas deveria ser escolhida e controlada por forma a criar um determinado
mundo político. Eis a viragem linguística continental, sobre a qual se
ergue o pensamento pós-moderno que vingará na segunda metade do século
XX e que determinará a obsessão pós-moderna e crítica com a linguagem:
se não há realidade para lá da linguagem, podemos usar esse poder das
palavras para criar o mundo que queremos.
Também
aqui se encontra, consequentemente, a raiz do movimento politicamente
correto, que nasce com o objetivo de tornar a sociedade mais inclusiva.
Esse esforço passaria (fundamentalmente, mas não só) por produzir
alterações linguísticas, quer pela introdução de novas palavras e
alteração de antigas palavras, quer pela eliminação de palavras
discriminatórias ou ofensivas. O argumento seria simples: se o mundo
depende das palavras que usamos, basta eliminarmos as palavras erradas
para criarmos um mundo melhor.
Este argumento simples não resiste, porém, ao teste do tempo.
Em
primeiro lugar, é filosoficamente insustentável recusar a existência de
uma realidade que condiciona a nossa linguagem e a nossa experiência de
vida. O poder das palavras e da linguagem é inegável – afirmar,
contudo, que não há qualquer realidade para além dela coloca-nos no
domínio da irracionalidade. Como Jordan Peterson
diz espirituosamente, as pessoas que afirmam não acreditar na biologia
agem, na verdade, como se acreditassem – porque todas elas morrem…
Em
segundo lugar, aquilo que se afirmou como uma parole de resistência e
libertação tornou-se rapidamente uma arma de profunda intolerância. Se,
inicialmente, o objetivo era transformar a linguagem pública por forma a
criar um espaço menos ofensivo e mais inclusivo, a evolução foi no
sentido de um ímpeto cada vez maior de controlar o uso da linguagem, não
só na esfera pública como também na esfera privada, e de um crescimento
contínuo do “não-aceitável”. Esse crescimento traduziu-se na criação da
cláusula absolutamente arbitrária de “discurso de ódio”: apesar de se
tratar de um conceito indeterminado, tem, surpreendentemente, feito
caminho jurídico e está hoje previsto na maioria das legislações
ocidentais, para além de ser prolificamente utilizado no discurso
político, na gestão das redes sociais e na comunicação social –
independentemente da intenção do autor, da constante mutabilidade do
objeto e de qualquer parâmetro objetivo. Tal não é, no entanto, de
surpreender: o que a literatura e a história nos ensinam sobre o homem é
que a sua ânsia de controlar o outro não tem limites.
Em
terceiro lugar, este tipo de pensamento tem produzido aquilo que
Jonathan Haidt e Greg Lukianoff designam como cultura de securitismo
(culture of safetysm), com consequências funestas para as gerações
norte-americanas mais jovens. No livro The Coddling of the American Mind (infelizmente, sem tradução entre nós), que amplia o artigo publicado na revista The Atlantic,
os autores debruçam-se sobre os novos termos desta cultura (como
trigger warnings, safe spaces ou microaggressions) e o modo como ela tem
proliferado pelos campi académicos. De acordo com esta forma de pensar,
os estudantes devem ser protegidos não só de termos considerados
ofensivos, como também de tudo aquilo que possa causar desconforto. Foi
assim que alunos de Direito expressaram incómodo por abordar nas aulas o tema da violação,
incluindo pedidos para que a palavra “violar” não seja utilizada (como
na frase, “violar a lei”). Ou que se tornou norma a existência de
trigger warnings na lecionação de textos clássicos, para evitar
protestos como os de uma estudante que, tendo sido vítima de violação,
considerou inaceitável que o professor se tivesse focado na beleza da linguagem e no esplendor da imagética de Metamorfoses, de Ovídio.
Ao invés de espaços de desafio e confronto intelectual, as
universidades são cada vez mais entendidas como espaços de proteção
emocional. Na verdade, o bonito apelo de Frederico Lourenço,
no início do ano letivo, para a leitura dos clássicos, que, com toda a
sua violência e imoralidade, nos ensinam tanto sobre a realidade humana,
seria dificilmente aceitável do outro lado do Atlântico. E o resultado
político desta cultura de securitismo parece ser a de uma crescente predisposição dos mais jovens para aceitarem soluções políticas autoritárias.
Por
fim, importa considerar a mais grave consequência de equiparar palavras
a atos. Como Ricardo Araújo Pereira aponta regularmente, ao adotarmos
uma posição tão radical quanto ao poder das palavras, procedemos a uma
equivalência entre dizer algo e fazer algo. O mesmo é dizer, tornamos
legítima a ideia de que um ato agressivo é uma resposta adequada a uma
palavra entendida como agressiva. É por essa razão que J. K. Rowling
afirmou ter recebido “tantas ameaças de morte que poderia cobrir de
papel a minha casa com elas” depois do seu comentário considerado TERF.
Ou que Will Smith tenha entendido que a medida adequada à piada de Chris Rock fosse uma estalada. Ou que Salman Rushdie
tenha sofrido a concretização da ameaça que pairava sobre si, trinta
anos depois de lhe ter sido colocada pela primeira vez a pergunta com
que Joseph Anton
inicia as memórias sobre o escritor indiano: “Qual é a sensação de
saber que acaba de ser condenado à morte pelo aiatola Khomeini?”
Professora da Universidade da Beira Interior
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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