Se Putin não for derrotado na Ucrânia, a próxima década de 30 pode bem lembrar os anos 30 do século passado. Rui Ramos para o Observador:
É
fácil verificar como, na guerra da Ucrânia, as previsões andaram sempre
atrás dos acontecimentos, mudando conforme o resultado dos combates. Em
Fevereiro, perante a invasão russa, nenhum especialista esperava que a
Ucrânia resistisse: era uma questão de dois ou três dias, diziam os mais
bem informados, enquanto mediam o comprimento do comboio de blindados
russos a serpentear irresistivelmente em direcção a Kiev. Agora, em
Setembro, depois de a Ucrânia ter reconquistado a região de Kharkiv, já
temos analistas a prever uma vitória do exército ucraniano,
superiormente armado e motivado, contra um exército russo afinal com
falta de ânimo e de armamento.
Não
digo isto para achincalhar quem, a cada instante, tem de avaliar a
situação com as informações disponíveis naquele momento. Digo isto
apenas para lembrar que as guerras são assim: uma vez acabadas, é
relativamente fácil explicar porque é que as coisas se passaram como se
passaram; enquanto duram, porém, são uma surpresa constante, com todas
as reviravoltas no terreno a provocar fatalmente reviravoltas de
comentário e de análise. Em nenhum outro caso, como numa guerra,
funciona tão claramente a regra de Keynes: quando os factos mudam, mudam
as nossas opiniões.
Sucede
que a evolução de uma guerra não determina apenas previsões e análises.
Afecta também algo de mais fundamental: as visões do mundo. A derrota
da Alemanha e da Itália em 1945 não acabou com os fascistas, nem o
descalabro da União Soviética em 1991 acabou com os comunistas, mas
depois dessas duas datas passou a haver respectivamente muito menos
fascistas e muito menos comunistas. Para muita gente, como
memoravelmente notou H.L. Mencken, as manifestações de poder são sempre
mais persuasivas do que quaisquer argumentos. Por isso, as guerras foram
um ponto final de muitos debates ideológicos: quem ganha, e enquanto
ganha, passa a ter razão.
Vimos
algo parecido durante a campanha contra o fundamentalismo islâmico.
Enquanto o Estado Islâmico conquistou território na Síria e no Iraque,
por volta de 2014 e 2015, não faltaram entusiastas ao fundamentalismo
para cometer barbaridades no Ocidente. Desde que o Estado Islâmico foi
destruído, entre 2017 e 2019, os atentados no Ocidente diminuíram. Entre
outras razões, certamente porque ideologias associadas a derrotas
atraem menos seguidores.
É
por isso que na Ucrânia está mais em causa do que a integração europeia
ou a política energética alemã. Está em causa tudo isso, sem dúvida,
mas estão também em causa as nossas preferências políticas e
ideológicas. A ditadura neo-soviética de Vladimir Putin pretende ser uma
alternativa existencial ao Ocidente, como foi a velha União Soviética. É
quase certo que usaria uma vitória na Ucrânia para demonstrar que o é. E
há já quem esteja preparado para nesse caso descobrir virtudes às suas
ideias e métodos. Na Europa, comunistas e esquerdas anti-capitalistas
mal disfarçam, atrás de uma cínica condenação genérica da guerra, a sua
simpatia por um ditador determinado a abalar a ordem internacional em
que estão ancoradas as democracias liberais e as economias de mercado.
Nos EUA, algum conservadorismo, descrente em relação à possibilidade de
fazer valer os seus valores através do debate, parece fascinado por um
“regime forte” supostamente decidido a pôr termo à “decadência moral”.
Se Putin ganhasse na Ucrânia, uns convencer-se-iam de que as democracias
estão vulneráveis, e outros de que as ditaduras são muito mais
eficazes. O neo-sovietismo de Putin, alinhado com o comunismo chinês,
poderia aspirar a ser moda. Talvez a próxima década de 30 lembrasse os
anos 30 do século passado.
Os
soldados da Ucrânia estão a decidir, não só por onde vão passar as
fronteiras, mas o que muita gente, sempre susceptível às causas
bafejadas pelo sucesso, vai pensar amanhã. Esperemos que os factos
ajudem as boas opiniões. Como dizia o general MacArthur, nada substitui a
vitória.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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