A tese de Kundera é especialmente importante em Portugal, onde a lonjura geográfica faz com que países como a República Checa, Hungria, Polônia ou a Ucrânia sejam vistos como a periferia na Europa. Jorge Fernandes para o Observador:
Como
já é tradição estival, aproveito o privilégio de ter um espaço público
para escrever para deixar algumas sugestões de leitura para as férias.
Como sempre, esta é uma lista completamente subjectiva e baseada
meramente no prazer da leitura, numa mistura entre novidades e edições
mais antigas.
1
Cristo Parou em Emboli de Carlo Levi. Em boa hora, nos últimos anos, a
edição de literatura italiana do pós-guerra explodiu em Portugal,
graças, em parte, ao excelente trabalho que a colecção Livros do Brasil
tem vindo a realizar. A esmagadora maioria dos livros são, na verdade,
reedições ou novas traduções de clássicos que haviam já sido editados em
Portugal nos anos 60 e 70, mas que, devido às idiossincrasias do nosso
mercado editorial, em que o fundo de catálogo é descuidado, estavam
indisponíveis. Este Cristo Parou em Emboli de Carlo Levi é um dos livros
mais interessantes que li na primeira metade deste ano. Baseado em
factos reais, Carlo Levi, médico judeu nascido em Turim, conta a sua
experiência de exílio forçado no sul de Itália. A acção do livro
passa-se em 1935-36, anos de chumbo do fascismo que Levi passou em duas
aldeias perdidas na região de Lucânia. A descrição da miséria, dos
pequenos tiranos locais – como o chefe da polícia ou o velho e
incompetente médico local que receia que Levi tome o seu lugar com
conselhos de medicina moderna e consegue que este seja proibido de
exercer – e, em grande parte, da chamada questão meridional italiana aparecem aqui descritos de forma exemplar.
2
Um Ocidente Sequestrado ou a Tragédia da Europa Central de Milan
Kundera. Não faço parte da legião de admiradoras de Kundera romancista,
muito menos do seu título mais famoso. Será, certamente, defeito meu.
Gosto muito de Kundera enquanto ensaísta e intelectual público que, ao
longo das últimas décadas, depois de ter sido um feroz defensor do
comunismo enquanto forma de libertação (no bas-fond da literatura
Europeia diz-se que terá delatado outro escritor no início da década de
50), lutou contra a abjecção do regime Soviético depois deste ter
terminado com a Primavera de Praga. Este livro tem origem num ensaio
originalmente publicado na New York Review of Books, em 1984, no qual
Kundera discorre sobre como a maior tragédia da Europa Central e de
Leste não havia sido o Nazismo ou o Comunismo. Pelo contrário, o
principal legado histórico do século XX havia sido a percepção criada no
Ocidente de que os países da Europa Central eram “o outro” e não faziam
parte da nossa comunidade imaginada. O ponto central da tese de Kundera
é especialmente importante em Portugal, onde a lonjura geográfica faz
com que países como a República Checa, Hungria, Polónia ou a Ucrânia
sejam vistos como o Leste ou a periferia na Europa. Na verdade, como
Kundera mostra, e como a literatura anterior a 1945 demonstra, estes
países são o centro vital da Europa e onde todos os movimentos
aconteceram. A guerra da Ucrânia veio recolocar a questão da “pertença”
deste país à Europa enquanto comunidade histórica e cultural, tornando
este livrinho muito importante.
3
O Impostor de Javier Cercas. Se tivesse de escolher apenas um livro
lido na primeira metade deste ano, este levaria, sem dúvida, o prémio.
Depois de ter ido morar para Madrid no início do ano, tenho vindo a
trabalhar incansavelmente para diminuir a minha enorme ignorância em
literatura espanhola, da qual já me tinha apercebido, mas tendo sido
demasiado preguiçoso para colmatar. Este livro é, ao mesmo tempo,
brilhante e divertidíssimo, não apenas pelo talento evidente de Cercas,
mas, principalmente, pelo personagem principal do livro: Enric Marcos.
Quem é Enric Marcos? Essa é, talvez, a grande questão que perpassa todo o
livro. Em traço gerais, Marcos é um impostor que, durante anos, ganhou
vasta proeminência pública e política afirmando ter sido um dos poucos
espanhóis presos pelo Nazis no campo de concentração de Mauthausen.
Marcos tornou-se uma figura pública em Espanha, fazendo discursos, por
exemplo, no Congresso, onde comoveu políticos até às lágrimas, contando
aquilo que sofrera às mãos dos seus verdugos na Áustria. Quando se
preparava para participar com Zapatero como representante espanhol nas
comemorações do 60º aniversário da libertação do campo de concentração,
na Áustria, foi desmascarado por um historiador. Apesar de ter sido, sem
dúvida, a sua maior impostura, esta não foi a única. O livro de Javier
Cercas cobre toda a vida de Enric Marcos, incluindo a sua ascensão a
líder de uma das principais centrais sindicais na Espanha pós-Franquista
baseado em credenciais anarquistas que, mais tarde, revelar-se-iam
falsas. Por todo o livro perpassam reflexões do autor sobre a moda
política e intelectual da memória histórica, utilizada, na grande
maioria das vezes, para efeitos políticos imediatos. Notável. O livro
está, estranhamente, esgotado na distribuição comercial, apesar da
edição da Assírio e Alvim ser apenas de 2015. Redes como a RELI ajudam
os leitores a procurar pérolas como esta.
4
Beyond the Wall: East Germany, 1949-1990 de Katja Hoyer. A última
geração que cresceu do outro lado da cortina de ferro e que, na grande
maioria dos casos, eram, no máximo, pré-adolescentes em 1989, está a
começar a escrever livros. Este livro é uma espécie de versão alemã, com
menor patine intelectual, é certo, de Free, que Lea Ypi lançou o ano
passado, perante gáudio e aplauso intelectual em toda a Europa, sobre o
seu crescimento na Albânia de Hoxha. O livro de Hoyer tem três aspectos
que o tornam muito interessante. Em primeiro lugar, o livro tem uma
secção inicial sobre as origens históricas da elite que fundou o Partido
Socialista Unificado da Alemanha, o partido único que comandou o país
com mão de ferro até 1989. A maioria desta elite exiliou-se em Moscovo
durante os anos 20 e 30 fugindo do horror Nazi, criando, inclusive, uma
Escola Alemã, onde os filhos dos exilados políticos eram socializados.
Esta elite regressou à Alemanha em 1945-46 para criar o paraíso na
terra, regresso, esse, que aconteceu para um país que, devido à guerra,
havia sofrido enormes transformações sociais e políticas que o tornavam,
de facto, incompreensível para o esquema mental dos exilados que haviam
saído da Alemanha duas décadas antes. No fundo, a mesma tragédia mental
de Álvaro Cunhal que, em 1975, não percebeu que o embrião de classe
média nascida nos anos 60 em Portugal tornava o seu esquema mental,
gizado em Rumo à Vitória, completamente obsoleto. Em segundo lugar, o
livro de Hoyer conta-nos a vida na Alemanha de Leste para lá de Berlim, o
que nos dá uma perspectiva única sobre a vida do cidadão comum em zonas
do país que, na verdade, estavam muito menos expostas às tensões
geopolíticas e ao contacto com o Ocidente. Por último, e aqui o encontro
com Ypi é notável, o livro de Hoyer entra num saudosismo algo bacoco,
apresentando o modelo económico e social do Leste não só como viável,
mas, em muitos aspectos, superior, dando como exemplo disso os anos 70
em que o crescimento económico e o bem-estar social aumentaram imenso na
Alemanha de Leste. Hoyer mostra estatísticas do número de televisões e
frigoríficos que ultrapassou, em alguns anos, a Alemanha Ocidental. A
Stasi e a opressão não passavam de um detalhe.
Postado há 3 weeks ago por Orlando Tambosi
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