BLOG ORLANDO TAMBOSI
Até que ponto Putin vai permitir que seu protegido do Grupo Wagner continue a acusar a cúpula militar até de “traição à pátria”? Vilma Gryzinski:
Quem
está fora, custa a entender o culto à hierarquia em todas as forças
armadas. Quantos filmes de guerra já foram feitos mostrando combatentes
se rebelando contra ordens absurdas ou autodestrutivas?
Quem
vê por dentro o complexo funcionamento de uma máquina de guerra,
entende melhor a necessidade de parâmetros rígidos para ordenar
situações em que a vida de seres humanos e até o destino de nações
inteiras dependem de ordens bem formuladas, bem transmitidas e bem
executadas – na medida de possível, considerando-se o efeito da famosa
névoa que envolve os combates, multiplicando por muitos milhares a
máxima suprema de Mike Tyson (“Todo mundo tem um plano até que leva um
soco na boca”).
O que está acontecendo agora entre as forças russas em combate na Ucrânia é uma quebra de hierarquia. Ou melhor, o levante da hierarquia paralela incentivada por Vladimir Putin
quando permitiu que Ievgueni Prigozhin, um ex-dono de restaurante
transformado em íntimo do poder criasse uma força militar própria, o
Grupo Wagner.
Da
Síria ao Mali, os wagneristas, como são chamados, prestaram bom
serviços, recompensados por bons salários e pelos frutos da exploração
de poços de petróleo que “liberassem” ou do ouro extraído nas mais
torpes condições, com métodos de tortura tão brutais que impressionaram
até militantes do ISIS.
Prigozhin,
que tem ambições muito mais amplas do que as de um homem que fez
fortuna ganhando contratos camaradas para fornecer refeições ao exército
russo, viu na Ucrânia a chance de ser coroado um salvador da pátria.
Agora, está falando a linguagem dos traidores, em ataques furiosos
contra os dois principais cabeças da guerra de agressão, o chefe do
estado-maior das Forças Armadas, general Valeri Gerasimov, e o civil
Serguei Shoigu. No último ataque de nervos, mostrou corpos empilhados de
wagneristas e pegou pesado no discurso.
“O
chefe do estado-maior e o ministro da Defesa estão dando ordens a torto
e a direito para que o Wagner não apenas não receba munição, mas também
transporte aéreo”, trovejou, aos berros. “Isso pode ser comparado a
traição à pátria, num momento em que o Wagner está lutando por Bakhmut e
perdendo centenas de combatentes todos os dias”.
Indiretamente,
Prigozhin confirmou informações dos militares ucranianos sobre o
inacreditável número de mortos provocado por uma batalha sem grande
valor estratégico. Confirmando o desprezo pela vida de seus próprios
combatentes, uma triste característica russa, os comandantes de
Prigozhin mandam uma primeira onda de convocados nas prisões.
Inevitavelmente, são todos mortos. Daí vem a segunda onda. Todos mortos.
Eventualmente, conseguem cansar a defesa ucraniana e avançar, em alguns
casos distâncias tão ridículas, considerando-se as baixas, como um
metro ou até 50 centímetros.
Conquistar
Bakhmut virou questão de honra para Prigozhin – e agora também questão
de sobrevivência política. Ele só pode se safar dos ataques aos dois
homens mais importantes da estrutura militar se tiver algo muito bom
para mostrar.
Manter
a cúpula militar em estado de insegurança é uma antiga tática
comunista, do período em que comissários políticos vigiavam e
controlavam todos os oficiais, por mais estrelas vermelhas que tivessem
nos ombros. Mas chamar de traidores Gerasimov, deslocado para o comando
direto da guerra na Ucrânia,
e Shoigu, um raro amigo de Putin, companheiro de pescarias pela
imensidão siberiana em tempos menos complicados, é demais até pelos
velhos padrões stalinistas.
Se
os dois principais responsáveis pelo comando da guerra são “traidores”,
o que os russos comuns podem pensar? Que o mundo construído por Putin
obviamente está desmoronando.
O
racha público e notório acontece num momento de alta volatilidade da
guerra que completa um ano amanhã. Putin quer passar a imagem de que
tudo vai bem na “operação especial” e a Rússia não está nem aí para as
sanções ocidentais. Para o público estrangeiro, quer foco na mensagem –
puramente chantagista – de que o apoio à Ucrânia pode desandar para uma
guerra nuclear.
Como conciliar isso com imagens de pilhas de corpos e um homem furibundo falando insanidades?
Todos
os militares, de qualquer país ou qualquer filiação, simplesmente
abominam as chamadas interferências externas. Ouvir xingamentos de um
ex-presidiário e ex-cozinheiro não melhora muito esse estado de
espírito.
Prigozhin não pode terminar bem, pois nesse caso a cúpula militar russa terá terminado mal.
Vários
blogueiros militares, que são todos de linha duríssima, apoiam o chefe
do Wagner e acham que as forças regulares estão mal comandadas.
“A
alta cúpula está sabotando a ofensiva russa (em Bakhmut)”, escreveu um
deles. “A missão de todo blogueiro russo agora é levantar esta questão
da forma mais estrondosa possível, para lhe dar prioridade máxima. Caso
contrário, seremos todos cúmplices nesse processo diabólico que tem por
intuito exterminar a vitória russa”.
A coisa está feia. E a existência de uma hierarquia paralela só a torna pior.
Se
não for controlada, quanto tempo demoraria para que wagneristas
desesperados começassem a trocar balaços com soldados regulares,
brigando por material bélico que julgam estar sendo sonegado a eles?
Não
seria uma briga fácil. Calcula-se que os wagneristas têm de 20 mil a
até 50 mil homens na Ucrânia, incluindo os ex-militares que são
contratados para formar o grosso do grupo e os infelizes recrutados nas
prisões que se dispõem seis meses na frente de combate em troca de um
indulto.
O
grupo se chama Wagner por causa do nome de guerra de seu fundador
original, Dimitri Utkin, um admirador do compositor alemão e da
ideologia ultranacionalista no espectro da eslavofilia. Estará seu líder
atual ouvindo a quarta parte da mais estrondosa ópera de Wagner, sobre o
crepúsculo dos deuses?
Postado há 2 days ago por Orlando Tambosi
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