BLOG ORLANDO TAMBOSI
Apesar da demonização do nacionalismo, nação e democracia parecem continuar a ser indissociáveis como pilares da modernidade política. Jaime Nogueira Pinto para o Observador:
Na
sua viagem à Europa, o presidente Biden definiu o conflito que opõe a
Rússia à Ucrânia e ao Ocidente como o centro quente da nova clivagem
ideológica que divide o mundo em democracias e autocracias, numa espécie
de reedição de The West and The Rest.
Talvez
porque o nacionalismo seja hoje um conceito particularmente demonizado,
também os contendores invocam razões ideológicas para um conflito que
é, fundamentalmente, um conflito entre nacionalismos: o nacionalismo
ofensivo russo pós-soviético, que vê na afirmação de Moscovo como um
poder na Eurásia a defesa dos interesses nacionais do país, e o
nacionalismo defensivo ucraniano que, paradoxalmente, a invasão russa de
há um ano tem vindo a consolidar.
Assim,
Putin quer concluir a obra da grande guerra popular de 1945 e
exterminar os “neo-nazis” que ainda pululam na Ucrânia e, ao mesmo
tempo, salvar o Ocidente da decadência; e Zelensky quer defender a
democracia contra o “nazismo” de Putin e conta para isso com “o
Ocidente”, também ele ameaçado pela autocracia russa. Este Ocidente das
democracias é capitaneado pelos Estados Unidos, que patrocinam o
nacionalismo defensivo ucraniano por razões de princípio e de legalidade
internacional, por razões ideológicas, de luta contra as autocracias,
mas também, ou sobretudo, por razões claramente enunciadas de interesse
nacional e estratégico – com a ajuda militar norte-americana à Ucrânia a
funcionar, declaradamente, como um “investimento” para “enfraquecer a
Rússia” e neutralizar preventivamente “the Russian army and navy for
next decade.”
Acresce
que, se a distinção entre autocracia e democracia é, em princípio,
clara e inequívoca, estas categorias têm vindo a revelar-se
particularmente fluídas e manipuláveis. Tanto que, no Verão passado, o
presidente dos Estados Unidos não hesitava em identificar uma ameaça
interna à democracia norte-americana, uma ameaça autocrática, ou
“semi-fascista”, protagonizada por mais de 80 milhões de eleitores,
dispostos a votar no Partido Republicano de Donald Trump, numa eleição
democrática.
Lembro,
a propósito, que foi sem grandes estados de alma que a Guerra Fria foi
ganha pelas democracias anglo-saxónicas em aliança decisiva com algumas
autocracias, entre elas a chinesa e a saudita (que, ao aumentar a
produção do petróleo, arruinou, nos anos oitenta, a economia soviética).
Lembro ainda que, apesar da demonização do nacionalismo, nação não é
sinónimo de autocracia. Pelo contrário, nação e democracia são
indissociáveis como pilares da modernidade política, como sublinhou Liah
Greenfeld no seu clássico Nationalism: Five Roads to Modernity.
Globalização democrática
Em
2017, Dani Rodrik, professor de Economia Internacional em Harvard,
escrevendo sobre a contradição entre a progressiva globalização
económico-financeira e a continuidade da existência de Estados nacionais
soberanos e democráticos, afirmava que os poderes discretos e não
escrutináveis que regem um mundo sem fronteiras, tornam mais difícil o
exercício da vontade popular e da soberania nacional. De resto, já
antes, num livro de 2011, The Globalization Paradox: Democracy and the
Future of World Economy, Rodrik desenvolvera mais demoradamente o tema.
Ao
contrário de muitas profecias que, sobretudo a partir do fim da Guerra
Fria, auguravam vida curta para o Estado e para as fronteiras, os
Estados independentes continuaram e são eles que determinam ainda hoje a
paz e a guerra, como é particularmente notório na invasão russa da
Ucrânia.
Dentro
da articulação geopolítica de um mundo de Estados soberanos – com mais
ou menos soberania real – houve também uma prescrição ideológica,
nascida dos conflitos do século XX e do seu resultado, de que a
Democracia devia ser a definitiva forma legítima e legal de governo.
Urbi et orbi, sem limites, sem restrições, na Ásia como na Europa, na
África como na Oceânia.
O
tema da globalização democrática tem uma longa história, que começa com
a intervenção norte-americana na Grande Guerra; intervenção que
determinou a vitória dos Aliados e fez dos Estados Unidos, para todos os
efeitos, os principais, senão os únicos, vencedores. Ou, pelo menos,
foram os norte-americanos os árbitros da Paz.
Foi
o presidente Woodrow Wilson o grande campeão dessa democratização do
mundo pós-guerra. Wilson era um ideólogo e defendia a ideia do
Presidente Monroe de que a América, o Novo Mundo, era moral e
politicamente superior ao velho mundo europeu. Wilson repetia que “the
World must be made safe for democracy”, fazendo disso a sua missão e a
missão da América. Wilson foi o primeiro presidente americano a viajar
para a Europa, onde esteve entre Janeiro e Junho de 1919, para a
conferência da Paz de Paris. Antes de voltar à América, declarou que era
“missão dos Estados Unidos trazer a liberdade, a justiça e a humanidade
aos povos menos civilizados do mundo”, povos esses que deviam “adoptar
princípios americanos”.
Entretanto,
na conferência de Versalhes, Wilson vetara uma proposta do Japão no
sentido do reconhecimento da igualdade racial. Era da Virgínia, educado
na Geórgia e na Carolina do Sul, e fora o primeiro sulista, desde a
Guerra Civil, a ocupar a Casa Branca. Na presidência, opusera-se à
integração racial: saneara altos funcionários negros, criticara a
“Reconstrução” e manifestara-se contra o direito de voto dos negros. No
entanto, insistia em democratizar, civilizar e humanizar a Europa e o
mundo.
Parece-me
interessante e importante este prelúdio como introdução ao problema das
reais contradições entre valores; contradições que normalmente são
esquecidas. Na democracia há, desde logo, um conflito entre dois
conceitos – o conceito da tradição liberal anglo-saxónica, que vê a
democracia sobretudo como a protecção constitucional e até
pré-constitucional dos direitos e garantias individuais, da liberdade de
expressão ao direito de propriedade; e o conceito rousseauniano
continental da “vontade absoluta da maioria”, em que a maioria pode pôr e
dispôr do poder.
Teoricamente,
nada impede que estes dois conceitos se coordenem e convirjam, mas, na
realidade, há todo um historial de diferenças. Enquanto os modelos
inspirados na ideia rousseauniana da divinização da maioria e respectiva
vontade geral tendem a interpretar extensivamente os poderes dessa
maioria e a suprimir progressiva e expeditamente as oposições (veja-se o
caso hitleriano e dos regimes comunistas na Europa Oriental), a
tradição anglo-saxónia acautela essas liberdades. Ou acautelava, porque
hoje, com o wokismo e as proibições e cancelamentos daí decorrentes,
talvez também estas liberdades está em risco.
O
que aqui quero sublinhar é que a democracia precisa da nação. Sem nação
e sem identidade nacional como valores comuns identificadores de uma
comunidade, torna-se muito difícil que o eleitorado não se fragmente por
linhas de rotura.
Teoria e realidade
Temos
como exemplo as dificuldades da consolidação da democracia em África.
Num estudo de Guy Rossatanga-Regnault, na revista Afrique Contemporaine,
de 2012, intitulado “Identité et démocracie en Afrique. Entre
hypocrisie et faits têtus”, o autor concluía da análise das lutas
políticas em África que, com raras excepções, os conflitos vinham da
questão identitária, isto é, da concorrência permanente entre a
identidade nacional e outas identidades – étnicas, regionais ou
religiosas.
Quase
todos os Estados do mundo começaram pela identidade tribal, clânica,
social, religiosa. E nem sequer o argumento das fronteiras artificiais
da colonização e da partilha de África é excepcional: os romanos não
tiveram grandes preocupações identitárias quando dividiram
administrativamente o Império; nem nenhum dos dirigentes imperiais ou
imperialistas que lhes sucederam se preocuparam muito com o rigor
histórico-etnológico dessas divisões, a não ser quando lhes facilitavam o
domínio.
Também
o modo geral de fazer países na Europa e nas Américas foi a guerra de
independência contra o dominador e, a seguir, a guerra civil. O
vencedor, assegurada a vitória, pacificou. Só depois, ao longo da
História, as afinidades do lugar, da língua, das glórias e dos
sacrifícios comuns foram fazendo, pela História e pela memória, a tal
unidade nacional. Por isso também agora, na Ucrânia, é pelo sacrifício
comum que a unidade e a identidade nacional têm vindo a consolidar-se.
A
democracia, quer como protecção dos direitos e garantias individuais,
quer como rousseauniana vontade absoluta da maioria, chegou plenamente
no século passado. Durante séculos, o regime foi a monarquia, primeiro
absoluta, depois liberal. E até muito tarde, quase até à primeira guerra
mundial, o sufrágio era censitário e exclusivamente masculino.
Foi
durante esses tempos que se foram formando, na Europa e nas Américas,
as nações, as identidades, as lealdades, as comunidades. Sempre que
outras identidades – por exemplo regionais – sobrevivem em democracia,
há problemas de unidade nacional, como sucede com os separatismos
catalão em Espanha, valão na Bélgica, ou do Quebec, no Canadá.
A
maioria dos Estados africanos teve a sua independência no século XX, na
vaga de descolonização iniciada pelos poderes coloniais europeus, na
sequência do fim do mundo eurocêntrico, com a Guerra de 1939-45 e com a
sua substituição, como grandes poderes, pelos Estados Unidos e pela
União Soviética. Ingleses e franceses tentaram, uns por via económica,
outros por via político-militar, manter uma influência e uma hegemonia
neo-colonial. E, durante a Guerra Fria, o destino dos Estados africanos
esteve também, em parte, condicionado pelos respectivos alinhamentos com
as grandes potências (embora, a partir de Bandung, se procurasse criar
uma terceira via, não alinhada).
A
Guerra Fria permitiu, em África e no resto do mundo, a continuidade de
Estados não democráticos, mas, com o seu fim, os poderes vencedores – os
Estados liberais anglo-saxões e, entre todos, os Estados Unidos –
quiseram, como o Presidente Wilson depois da Grande Guerra, voltar a
impor o seu modelo político, a democracia multipartidária.
Com
maior ou menor esforço, muitos Estados africanos fizeram
pragmaticamente a adaptação, pelo menos na letra da lei, das suas leis
fundamentais. Mas se a democracia foi, na Europa e nas Américas, um
processo de longa formação, um processo de dois séculos, até que ponto
era possível ultrapassar esses condicionalismos e atingir aceleradamente
as condições nacionais e culturais necessárias à democracia?
Entender
a questão é um passo fundamental para tentar lidar com o que é um
problema vital em África e no mundo: encontrar uma forma estável, justa e
pacífica de institucionalizar a soberania nacional e popular. Soberania
que, também na Europa e nas Américas, parece agora ser, cada vez mais, a
melhor forma defender os valores do Ocidente contra as manipulações das
vanguardas esclarecidas.
Postado há Yesterday por Orlando Tambosi
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