Ao contrário do que pensam as modas derivadas do estoicismo para consumo, nada é mais distante da ética estoica do que vê-la como fórmula para o sucesso num mundo cujo coração bate no seio do metaverso como "progresso". Luiz Felipe Pondé para a Folha de São Paulo:
Somos seres dados a se perder. No sexo, no dinheiro, na política,
no trabalho, no medo da morte. A percepção de que a consciência é um
peso pode ser, muitas vezes, assustadora. Não é por acaso que os
evolucionistas afirmam que tivemos que nos adaptar a dois ambientes, o
externo, como todos os seres vivos, e o interno, o mundo da consciência.
Até onde ir para ganhar dinheiro,
sucesso e fama? Até onde ir para garantir a carreira profissional? Até
onde ir para ter um relacionamento amoroso "saudável"? Até onde suportar
a radicalização política a sua volta?
Modas não faltam. Aprenda a respirar. Meditar. Mindfulness. Terapia holística. Jesus
para consumo. Superar crenças improdutivas. Dietas naturais.
Autoconhecimento —que pode ser uma fria, no caso de ser uma busca séria,
porque você pode vir a descobrir que é um escroto.
A
consciência nos dá trabalho, mesmo quando não temos consciência disso.
Por isso que são inúmeras as tentativas de que algo ou alguém nos ajude a
lidar com ela. Uma dessas tentativas mais antigas é conhecida como a
direção espiritual. Apesar do termo ser de raiz cristã no século 17 e
seguintes, a prática data, no ocidente, no mínimo desde a antiguidade
greco-romana.
Neste
sentido, gostaria de apresentar —para quem não conhece— a excelente
obra, sem tradução no Brasil, infelizmente, "Sénèque, Direction
spirituelle et pratique de la philosophie", ou Sêneca,
direção espiritual e prática da filosofia, de Ilsetraut Hadot, filósofa
nascida na Alemanha. Seu sobrenome é conhecido porque ela é a viúva de Pierre Hadot,
morto em 2010, filósofo francês traduzido no Brasil. Quem sabe alguma
editora decide publicar para o público que não lê francês este excelente
tratamento da obra de Sêneca.
Nesta
obra, a filósofa faz uma recuperação do tema da direção espiritual na
Grécia antiga, até chegar a Sêneca (4a.C.–65a.C.), estoico romano
nascido na Espanha. Direção espiritual implica uma relação entre alguém
mais velho e experiente nos dramas estruturais da vida —sexo, dinheiro,
trabalho, política, morte, entre outros— e alguém mais jovem, em busca
de entendimento e prática do enfrentamento desses dramas.
Entretanto,
esse processo se dá dentro de parâmetros definidos por uma prática
(ética) e uma dogmática (teoria) estoicas. A segunda orienta a primeira.
A "tranquilidade da alma", título de um livro do Sêneca, pode ser
buscada na medida em que colocamos limites às tendências humanas de
degenerar ao longo da vida, correndo atrás de prazeres, sucessos,
riquezas, poder.
Esses
limites podem ser alcançados pelo esforço racional de conscientemente
reconhecer que somos parte de um todo infinito, indiferente a nós,
ordenado pelo "Logos" —o centro racional do cosmo. Nossa efemeridade
pode nos guiar a um terreno menos acidentado.
Desconfiar
das promessas do mundo, vivendo dentro dele, manter um certo
distanciamento das juras feitas ao desejo pela máquina do mercado,
buscar uma vida próxima a frugalidade. O estoicismo é excepcionalmente urgente num mundo do consumo, em que a própria vida interior é território de precificação agressiva.
Ao
contrário do que pensam as modas derivadas do estoicismo para consumo,
nada é mais distante da ética estoica do que vê-la como fórmula para o
sucesso num mundo cujo coração bate no seio do metaverso como
"progresso".
O
estoicismo tende a austeridade, a recusa de bens efêmeros porque seu
foco é o combate aos vícios e a contemplação atenta do Logos que nos diz
que tudo está passando, nada é permanente, a não ser o próprio Logos. O
sofrimento psíquico —forçando aqui um termo contemporâneo— nasce dessa
cilada que é a promessa de felicidade definida como realização plena dos
desejos centrada no Eu absoluto.
Uma
boa notícia para os leitores brasileiros é a publicação pela editora
Edipro de obras dos grandes estoicos. Como uma boa introdução ao tema, a
obra escrita pelo professor de Oxford George Stock "O Estoicismo", da
mesma editora, apresenta tradição estoica grega em linguagem aberta ao
público não especializado. Não perca tempo com bobagens como o
mindfulness.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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