Após quatro anos de bolsonarismo, é preciso recompor noção e exercício da liberdade de expressão. Há uma ideia equivocada sobre a palavra, como se fosse território da impunidade. Editorial do Estadão:
Em
1988, o País restabeleceu, por meio da Constituição, a liberdade de
expressão, de imprensa e de opinião. A censura da ditadura militar –
definindo o que podia e o que não podia ser publicado, exposto ou
escrito – ficava, assim, definitivamente extinta. Para impedir eventuais
retrocessos no futuro, inseriu-se no texto constitucional uma cláusula
pétrea sobre o tema: “Não será objeto de deliberação a proposta de
emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais”.
Dessa
forma, no Estado brasileiro, sempre será “livre a manifestação do
pensamento, sendo vedado o anonimato” (art. 5.º, IV), como sempre será
“livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de censura ou licença” (art. 5.º, IX). A
garantia dessas liberdades de forma permanente é fonte de paz e
tranquilidade. Que cada um possa se expressar, comunicando aos outros o
que acredita, é aspiração humana fundamental: é parte essencial da
dignidade humana, é elemento necessário do regime democrático.
Mas,
justamente para que todos possam exercer suas liberdades fundamentais, a
liberdade de expressão não é uma autorização para dizer impunemente o
que bem entender. Há limites. A Constituição assegura, por exemplo, que
“são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das
pessoas” – ou seja, a liberdade de expressão não dá direito a ofender.
Por isso, o Código Penal prevê os crimes de calúnia, injúria e
difamação. Todos têm direito a expressar sua opinião política, mas
ninguém tem direito a caluniar, injuriar ou difamar quem quer que seja.
Outros
exemplos de crimes previstos na lei penal envolvendo a comunicação são a
injúria racial, a incitação ao crime, a comunicação falsa de crime e o
ultraje ao culto religioso. Nada disso significa reduzir a liberdade de
expressão. É antes o reconhecimento de que a palavra é importante e
produz efeitos.
Todo
esse arcabouço jurídico sobre a liberdade de expressão – suas
garantias, seus limites e suas consequências – vem sofrendo um intenso
e, em certa medida, inédito ataque nos últimos anos. A ameaça não é
fruto de tentativas de emenda constitucional, inviáveis de prosperar em
função da cláusula pétrea. O ataque é mais sutil e mais perigoso. Ele
decorre de uma compreensão equivocada da ideia de liberdade de
expressão, como se a palavra fosse território sem lei, isto é, como se
houvesse um direito a falar o que bem entender, em um contexto de
irrestrita irresponsabilidade.
O
quadro atual é desafiador. Essa compreensão equivocada da liberdade de
expressão não está mais restrita a pequenos grupos extremistas. Ela se
difundiu. Fez-se cultura. A própria expansão da internet e das redes
sociais, com a oferta de novos espaços de expressão, gerando novas
percepções de liberdade, contribuiu para reforçar a ideia de que a
palavra estaria imune não apenas a um controle prévio, mas à própria
lei.
Tudo
isso foi intensificado por Jair Bolsonaro ao longo de seus quatro anos
na Presidência da República, ao transformar essa equivocada compreensão
da liberdade de expressão em bandeira eleitoral. Não haveria limites,
tampouco parâmetros objetivos. Sob o pretexto de liberdade, estaria
assegurada ampla impunidade. Inúmeros, os exemplos envolvem desde
negação de dados científicos e insinuações criminosas contra inimigos
políticos até desinformação contra o regime democrático e o sistema de
votação.
Agora,
o País tem pela frente o desafio de resgatar a liberdade de expressão
em sua dimensão de garantia e direito de todos. Ela não é instrumento de
ataque de alguns que se acham mais espertos ou violentos. Nessa tarefa
de recompor a noção e o exercício dessa garantia fundamental, o Poder
Judiciário tem um papel especial, seja para evitar a impunidade de quem
cometeu crimes, seja para ater-se aos limites de sua jurisdição – sempre
lembrando que ao Estado não cabe organizar o debate público ou ser
árbitro das ideias presentes numa sociedade. A liberdade de expressão é
para valer, sem exceções.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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