Num mundo cada vez mais submetido à lógica de satisfazer o cliente, os espaços de pluralidade são cada vez mais restritos. Nicolau da Rocha Cavalcanti para o Estadão:
É
fato conhecido, quase um lugar-comum: os jornais, quando cumprem sua
tarefa, incomodam o poder. Revelam esquemas, privilégios, ineficiências e
incompetências do poder público. Expõem, assim, o que muitos gostariam
que ficasse escondido. Mas não é só o poder que deve se sentir
incomodado com os jornais. Quando há jornalismo, os leitores também se
sentem incomodados com a leitura do jornal. E isso, em vez de ser um
ponto frágil, é uma das maiores contribuições que os jornais podem fazer
para seus leitores e para a sociedade.
Os
jornais são espaços de pluralidade. Por mais que nos identifiquemos com
os valores de um jornal, há em toda edição matérias das quais
discordamos, seja pelo enfoque, pelo tom, pela importância dada à
notícia, pelo conteúdo em si; nos artigos de opinião, pela posição
defendida.
Os
jornais não conseguem expressar toda a diversidade de opiniões e
perspectivas existentes numa sociedade. É uma meta a ser buscada. No
entanto, de forma muito concreta e habitual, eles oferecem uma
oportunidade privilegiada de contato com diferentes ideias e percepções
sobre a realidade.
Eis
um fenômeno interessante. A internet multiplicou os canais de
expressão. Todos podem escrever, publicar ou comentar o que quiserem. No
entanto, nenhum site expressa individualmente a pluralidade de
perspectivas e opiniões que os jornais trazem diariamente. Há sites
sobre todos os assuntos e para todos os gostos, mas são incrivelmente
mais setorizados do que os veículos de imprensa.
Os
jornais são um produto sofisticado. Mesmo que tenha princípios
editoriais bem definidos, um bom jornal não traz uma única visão de
mundo. Ou seja, os jornais não agradam inteiramente a seus clientes.
Essa característica da imprensa sempre provocou mal-estar. No entanto,
nos dias de hoje, com a polarização existente na sociedade, esse aspecto
do jornalismo sofre ainda maior incompreensão. Há uma cultura de
desprezo por tudo aquilo que confronta as ideias, convicções e
sensibilidades pessoais.
Faz-se
aqui uma defesa não apenas do direito de incomodar, mas do dever da
imprensa de incomodar. Ao oferecer variadas perspectivas – o que
significa sempre desagradar, em algum nível, a todos os leitores –, o
jornal cumpre uma função social fundamental: expõe diariamente o seu
público a diferentes pontos de vista e a variadas visões de mundo.
Num
mundo cada vez mais submetido à lógica comercial, em que o objetivo é
satisfazer o cliente, os espaços de pluralidade são cada vez mais
restritos. Até mesmo as escolas e as universidades, que foram
historicamente âmbitos de contato com outras percepções e sensibilidades
além da perspectiva familiar, não raro oferecem hoje em dia a seus
alunos apenas uma monocromia cultural e ideológica.
Obviamente,
o pluralismo não significa negar a existência de verdades objetivas. A
Terra é redonda. As leis da física funcionam: prédios construídos
seguindo as regras da engenharia não caem. As vacinas salvam vidas.
Também não significa transigir com os valores cívicos e éticos com os
quais cada meio de comunicação se identifica.
No
entanto, não há sociedade livre, nem regime democrático, se a percepção
dos temas públicos é monolítica, formada a partir de uma única
perspectiva. Isso vale para as questões envolvendo o Estado – por
exemplo, decisões contramajoritárias do Supremo, silêncios do Congresso
sobre determinadas causas, políticas tributárias e programas sociais –,
bem como para aqueles temas de fundo sempre presentes em uma sociedade –
por exemplo, formação das novas gerações, desigualdades sociais,
raciais e de gênero, liberdade de expressão, estatuto social e jurídico
das famílias, representação política das minorias, laicidade do poder
público e proteção do meio ambiente.
Não
cabe a um jornal, sob o pretexto de não desagradar a seus leitores,
ignorar as diferentes possibilidades de percepção. Atuar assim seria
abdicar do jornalismo. Há sempre várias perspectivas possíveis a
respeito de um tema – e olhá-las com respeito, procurando entender o seu
contexto, é parte desse processo de apreensão e compreensão da
realidade.
Por
isso, a pluralidade de um jornal não é, não deve ser, mera tática, para
obter uma imagem de imparcialidade. Trata-se de algo mais profundo: é
consequência direta da convicção de que reportar os fatos com rigor – a
essência do jornalismo – exige sempre confrontar e expor várias
perspectivas. A realidade não é uma equação matemática: os fatos
humanos, sociais e políticos são necessariamente complexos,
multifacetados.
Ao
incomodar o leitor com pontos de vista diferentes dos seus, o
jornalismo lembra – de modo similar ao que faz a arte, em suas várias
expressões – que a perspectiva individual é necessariamente limitada. O
mundo é muito mais amplo e interessante.
Talvez
esta seja uma das principais carências dos tempos atuais: a dificuldade
de olhar sob a perspectiva do outro, de escutar uma opinião divergente,
de apreender uma percepção política distinta. Nesse cenário, o incômodo
do jornalismo é ainda mais relevante e necessário.
ADVOGADO E JORNALISTA
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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