O liberalismo e a social-democracia partilham um universo comum, constituindo-se como pontos de vista diversos sobre esse universo. O socialismo representa, pelo seu lado, um outro universo. Texto do professor Paulo Tunhas para o Observador:
De
todos os debates para as legislativas que vi, só num, que tenha
reparado, foram verdadeiramente discutidos projectos de sociedade: o
debate entre Rui Rio e João Cotrim Figueiredo. Mais exactamente, sem
obviamente navegar num plano teórico elevado, que seria despropositado
no contexto, a discussão mostrou as diferenças e as afinidades entre a
concepção liberal e a concepção social-democrata da sociedade, duas
possibilidades no interior da direita, se usarmos, como devemos,
“direita” numa acepção ampla, abarcando um pouco do centro-esquerda. Não
são apenas concepções políticas entre outras: representam provavelmente
as duas mais significativas tradições do pensamento político das
democracias ocidentais contemporâneas.
Social-democracia
e liberalismo correspondem a duas atitudes diversas face ao problema da
justiça social, e é natural que entrem em conflito. Mas, sendo a
sociedade o que é – uma coisa largamente indeterminada e indeterminável
que não pode ser objecto de uma teoria única -, as duas atitudes estão
destinadas a comporem-se uma com a outra em graus diversos, consoante os
momentos e as necessidades da sociedade. O mesmo indivíduo pode, de
resto, oscilar ao longo da vida entre as duas posições, sem
esquizofrenia alguma. Diria até que é bom que o faça.
Em
contrapartida, o socialismo, quaisquer que sejam os seus laços
históricos com a social-democracia tal como hoje a entendemos, é
insusceptível de composição real com o liberalismo. Não se trata de um
simples conflito, mas de uma oposição radical. O liberalismo e a
social-democracia partilham um universo comum, constituindo-se como
pontos de vista diversos sobre esse universo. O socialismo representa,
pelo seu lado, um outro universo. Vejam o horror com que um socialista
típico se refere ao liberalismo – e não é preciso ir a Pedro Nuno
Santos. Do comunismo não vale a pena falar.
Isso
explica em parte como os debates com a esquerda e entre a esquerda,
sendo obviamente debates políticos, no sentido em que lidam com o modo
como a sociedade se deve organizar, contêm sempre em si uma estranha
irrealidade. Há sempre, mesmo no discurso do PS, um sentido que escapa
ao sentido comum que é partilhado por social-democratas e liberais, por
mais conflitos que entre eles existam. E esse sentido exprime-se, na sua
dimensão mais aparente, sob a forma da afirmação de uma superioridade
moral.
Não
quer dizer isto que entre esquerda e direita, numa acepção ampla, o
debate seja impossível. Claro que é possível em muitos pontos
importantes e em questões que relevam da pura luta pelo poder, que, se
exercida livremente, é a condição política da democracia. Mas há uma
assimetria de base que não é nunca eliminável, mesmo quando a esquerda
adopta vestes pragmáticas. A direita pode procurar reformar a sociedade
das democracias liberais, mas não põe em questão a legitimidade destas. A
esquerda não pode existir sem a íntima suposição da sua intrínseca
ilegitimidade (o que, é claro, é tudo menos incompatível com a tentação
de obter o máximo de poder sobre essa sociedade). Foi assim no princípio
e assim continua a ser. O que é explícito no PC e no BE é implícito em
muito do PS.
Como
disse, o mais aparente sinal disso é o preconceito da superioridade
moral. E esse preconceito manifesta-se no que convém chamar o seu
ufanismo. Vejam um qualquer debate com Catarina Martins, por exemplo. O
seu discurso, mesmo que sob um modo calmo, contido e não agressivo que
seria inimaginável em Louçã, e que vale muitos votos ao Bloco, não
contém um momento que não transpire de moralização, de pretensão à
educação das massas e de amor desmesurado à própria ideia de esquerda.
Catarina ufana-se de ser de esquerda e mostra-o a todo o tempo.
Costa,
por razões simultaneamente ideológicas e pessoais, é mais contido. Mas,
quando passa ao ataque, não resiste ao mesmo ufanismo – ao regozijo
ilimitado por pertencer à gloriosa família da esquerda, com toda a
superioridade moral que a coisa comporta. Lembrem-se daquele vídeo em
que, a propósito de uma aparente transigência de Rio com Ventura, logo
nos esclareceu: “Quero ser muito claro: em circunstância alguma podemos
ceder nos princípios ou nos valores. O combate ao populismo exige linhas
vermelhas inultrapassáveis. Os valores do humanismo que inspiram a
nossa sociedade não são transacionáveis. Um político responsável tem
sempre os seus princípios e os nossos valores no centro”. Eis um
perfeito ufanista de esquerda a dar-nos lições do alto da sua elevada
estatura moral. Vamos ter mais disto, aposto, no debate de hoje à noite
com Rio. Costa não resistirá a ufanar-se dos seus “princípios” e dos
seus “valores” de proprietário da sociedade.
Em
contrapartida, a direita, desde os primórdios da democracia, é tudo
menos ufanista. Ventura é talvez uma excepção, mas Ventura copia a
esquerda, como devia ser óbvio para todos, e, de resto, o seu ufanismo é
um simples expediente. A direita, no seu conjunto, não se ufana de
nada, o que é incontestavelmente um ponto a seu favor, quaisquer que
sejam os seus defeitos. As lições de moral vêm-nos invariavelmente da
esquerda, com aquele contentamento seráfico típico dos bem-aventurados, e
são sistematicamente proferidas a partir de um ponto de vista que é o
da superioridade de um mundo – o da esquerda – sobre o outro – o da, no
fundo ilegítima, direita.
Mas
tudo isto – ou, pelo menos, uma boa parte disto – é consequência da
concepção que se tem da sociedade. Porque se a discussão é difícil com a
esquerda é porque o seu projecto de sociedade é, muito genericamente,
assente na ideia de uma ilegitimidade última da sociedade presente, que
deve dar lugar a uma outra sociedade mais justa. O resto decorre daí.
Enquanto que a conversa entre liberais e social-democratas é, quase por
definição, feita de acomodações recíprocas.
Não
se deduz de nada que se disse que a posição de esquerda seja ilegítima,
o que seria replicar a atitude da esquerda face à direita. Há até um
interesse particular à posição da esquerda, sobretudo da
extrema-esquerda: o ela colocar, de um modo que a direita não coloca, ou
pelo menos não coloca com idêntico vigor, a questão dos fundamentos da
sociedade, a ideia da sociedade como uma criação humana, embora cada vez
mais numa linguagem que torna essa mesma questão dificilmente
compreensível, ocultando-a no próprio gesto que a enuncia. Quis apenas
dizer que a viabilidade e a possibilidade de desenvolvimento da
sociedade actual só pode ser assegurada pelo conflito das posições
liberais e social-democratas (que extravasam de longe os partidos com
esses nomes – o CDS, por exemplo, cabe perfeitamente aqui) e pelas
negociações que o conflito permita.
Se
as pessoas vão ter isso em conta no dia de votar é uma questão
completamente diferente. Era bom que tivessem, mas isso é tudo menos
seguro. A esquerda criou, com método e sábia premeditação, clientelas
tão numerosas que o voto mais provável é um voto na estagnação,
retoricamente disfarçada com a promessa de uma sociedade mais justa.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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