O idealismo político e a desumanização das pessoas
Tem gente trabalhando arduamente para eliminar aquilo que nos torna humanos. Lygia Maria via FSP:
Dois
cientistas descobrem que um asteroide gigantesco atingirá a Terra.
Ambos tentam desesperadamente alertar o governo e a população, mas o que
se vê é o uso político da catástrofe iminente: um lado acredita nos
cientistas; o outro não. Todos brigam. Uma tragédia tratada como
comédia.
Essa é a história do filme "Não Olhe para Cima",
que estreou dia 25/12 na Netflix. Em poucas horas, só se falava dele
nas redes sociais. Fomos inundados por uma enxurrada de comentários
fazendo analogias políticas.
Teve
de tudo. Bolsonaristas antivacina acusando o lado interesseiro da
indústria farmacêutica na pandemia; feministas apontaram o machismo
contra a personagem da cientista como exemplo da dificuldade do
"empoderamento" das mulheres (mas esqueceram da personagem da presidente
dos EUA); esquerdistas acusaram aqueles que não gostaram do filme de
ignorantes negacionistas.
Como
diz o ditado, "quando o sábio aponta para a Lua, o idiota olha para o
dedo do sábio": ou seja, um filme que aponta para o perigo das
polarizações ideológicas e da politização da ciência é comentado a
partir de polarizações ideológicas que politizam o filme. Polarizar é
gritar "não olhe para o centro!". Cúmulo da ironia.
Temos
aqui um traço da movimentação política contemporânea: o fetiche da
politização. Os objetos do mundo são atingidos por um raio politizador
que esvazia qualquer outro significado possível do objeto. Quase ninguém
mais fala sobre um filme em si, poucos ligam para a estética. O que
vemos no cinema se espraia para outros campos.
Carnaval:
"Fantasia de índio é preconceito!". Futebol: "Não vou torcer para
Portugal porque é um país colonialista!". Música: "O novo clipe da
cantora Anitta objetifica ou empodera as mulheres?". Literatura:
"Deve-se proibir o ‘Sítio do Pica-pau Amarelo’ porque Monteiro Lobato
era racista!". Artes plásticas: "Vamos proibir exposição de arte queer
porque é imoral!".
Há
quem defenda que tudo é política, mas, ora, o tempo todo pessoas estão
fazendo coisas que nada têm a ver com política: estão apenas comendo,
amando, chorando, rindo, fantasiando etc. O ser humano não é esse
sujeito lógico e governado eminentemente pela razão —há momentos em que a
razão é bem-vinda (na política e na ciência) e, outros, em que não só é
irrelevante como pode até atrapalhar (sexo, arte, futebol, religião).
Esse "sujeito político" idealizado só existe no papel e na cabecinha do
militante (de esquerda ou de direita).
Por
isso, o idealismo tende a desumanizar as pessoas, a tratar sujeitos
como objetos. Talvez não precisemos de um asteroide para destruir a
humanidade, já que tem gente trabalhando arduamente para eliminar aquilo
que nos torna humanos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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