MEDIÇÃO DE TERRA

MEDIÇÃO DE TERRA
MEDIÇÃO DE TERRAS

sábado, 1 de janeiro de 2022

2021, o ano do sarrafo baixo.

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI
Coluna de Ruy Goiaba, publicada pela revista Crusoé:


Pensei em iniciar este texto com “feliz 2032, se sobrevivermos até lá”, “feliz 2020, parte 3” ou alguma das frases típicas do meu otimismo solar, mas lembrei que hoje — para você que me lê — é dia 24, ou depois, e não estou a fim de ser a goiaba azeda na ceia dos distintos leitores da Crusoé. Então, começo narrando uma historinha do folclore dos Beatles (aliás, assista a Get Back, o ótimo documentário dirigido por Peter Jackson, caso você ainda não tenha visto).

Paul McCartney conta que estava no estúdio durante as gravações do Sgt. Pepper’s, em 1967, mostrando a George Harrison e Ringo Starr uma das músicas que ele havia composto para o álbum, a insuportavelmente otimista “Getting Better”. Ao piano, McCartney cantava o refrão para os companheiros de banda: “I’ve got to admit it’s getting better, a little better all the time” (tenho de admitir que as coisas estão melhorando, ficando um pouco melhores o tempo todo). John Lennon chega e, sem nunca ter ouvido a música, canta um contraponto perfeito, em melodia e letra: “It can’t get no worse” (pior é que não pode ficar).

É isso que permite termos um mínimo de esperança de que 2022 seja melhor: o fato de que 2021 pode ser definido como o ano do sarrafo baixo. Uso a expressão como um misto de lembrança da Olimpíada fora de época com homenagem meio torta à grande Joan Didion (1934-2021), a autora de O Ano do Pensamento Mágico, cuja morte foi anunciada horas antes de eu começar a escrever esta coluna. Mas espero que o sentido seja claro: no Bananão, tudo foi nivelado tão, mas tão por baixo neste ano que o próximo terá de caprichar para conseguir ser pior. Principalmente no governo e no Congresso, hoje repleto de espécimes que em outros tempos não passariam ilesos pelo mata-burro e estariam entretidos comendo a grama em vez de alegadamente governar.

Claro: o espírito do tempo (Zeitgeist, que ultimamente está mais para Poltergeist) nos diz que sempre pode piorar e que há o risco de tropeçar no sarrafo e encontrar um alçapão no fundo do poço. A perspectiva para 2022 no Brasil é inflação de dois dígitos e crescimento ridículo, a não ser que você viva e pague suas contas no mundo encantado de Paulo Guedes, cuja conexão com a realidade é zero. Teremos uma eleição em que podemos nos ferrar um pouco mais e, logo depois — fora da ordem habitual das coisas —, uma Copa em que podemos ser eliminados com humilhação ou sem. De bônus, uma legião de pessoas morando na rua e novas variantes do coronavírus correndo soltas por aí.

Mas, como já disse alguém, a vida é teimosa; a arte também. Theodor W. Adorno, talvez um dos caras mais chatos que já transitaram pela Terra, tem aquela frase célebre sobre escrever um poema depois de Auschwitz (“um ato bárbaro”). Décadas depois, comentando a frase em uma entrevista, João Cabral de Melo Neto contestou: “O mundo não se detém e sempre foi violento” — ou seja, poetas continuaram escrevendo poesia, malgrado tudo. A história da humanidade é uma longa narrativa de misérias e massacres entrecortada por momentos de beleza: em meio à barbárie, a arte se faz e, não raro, sobrevive à devastação da paisagem. Quem tem alguma crença religiosa acredita na luz que “resplandece nas trevas” (“e as trevas não a compreenderam”), mas quem não tem pode crer em Leonard Cohen quando ele canta “there’s a crack in everything: that’s how the light gets in” (existe uma rachadura em tudo: é por ela que a luz entra).

Que em 2022 haja luz suficiente para nós, entrando por todas as frestas.

A GOIABICE DA SEMANA

Nada como fechar o ano com uma polêmica tão besta quanto a travada entre o ator Ícaro Silva, esse sir Laurence Olivier notório por obras como Malhação e Verdades Secretas 2, chamando o BBB de “entretenimento medíocre” e Tiago “Sapatênis” Leifert, o filho de ex-diretor da Globo que apresentava o reality show, respondendo algo como “é o BBB que paga o seu salário”. Para pessoas que acham que fazem ARTE, com maiúsculas, deve ser chato admitir que o sucesso do entretenimento medíocre ajuda a Globo a empregá-los, mas assim é a vida. De resto, é uma daquelas discussões que nos desperta imediata empatia pela fala do Mercúcio de “Romeu e Julieta”, pouco antes de morrer em meio à guerra entre Montéquios e Capuletos: que a peste caia sobre vossas duas casas.

AVISO DE FÉRIAS

A tradicional boa notícia do final do texto: como a próxima edição da Crusoé é de perspectivas para 2022 e eu tirarei merecidíssimas férias no início de janeiro, vocês só devem ver Ruy Goiaba por aqui na segunda quinzena do mês que vem. Esta seria a hora de fazer algum trocadilho envolvendo “peru” e “boas entradas”, mas deixo apenas o sincero desejo de um excelente Ano-Novo para todos.

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