Os defensores da cultura woke querem, no que à escravatura diz respeito, uma nova narrativa e, sobretudo, dinheiro e outras compensações que designam genericamente por “reparações”. João Pedro Marques para o Observador:
Corre
uma aragem de insensatez no Ocidente. Essa deslocação de ar tem um nome
— cultura woke — e nos países anglo-saxónicos é mais do que uma aragem,
é já uma ventania soprada por gente que se auto-considera desperta para
as injustiças sociais presentes e passadas, e que quer à viva força
corrigi-las.
Essa
gente está ao ataque e um dos seus alvos é a antiga escravatura em
contexto colonial. Li há tempos que o Banco de Inglaterra, tendo-se dado
conta de que alguns dos seus antigos responsáveis, nos séculos XVIII e
XIX, tiveram envolvimento no tráfico transatlântico de escravos, decidiu
bani-los retroactiva e postumamente, removendo as pinturas e os bustos que os retratam. Mais recentemente fiquei a saber que a Câmara de Nova Iorque decidiu, por unanimidade, retirar a estátua de Thomas Jefferson
do salão da sua assembleia legislativa. Porquê? Porque as pessoas que
votaram se sentiam incomodadas por terem de partilhar aquele espaço
público com a representação de um homem que chegou a possuir cerca de
600 escravos nas suas plantações, tinha pensamentos racistas e,
imagine-se, é agora classificado como “pedófilo” por ter tido uma
relação com uma das suas escravas, Sally Hemings, da qual teve seis
filhos, o primeiro dos quais quando a escrava tinha 16 anos.
Esta
forma descontextualizada de olhar para Jefferson, desinserindo-o do seu
tempo, do espaço e da cultura em que viveu, reflecte bem o grau de
idiotia, de ignorância histórica em estado bruto, a que se chegou. Penso
que não valerá a pena tentar explicar a estes fanáticos que muita
gente, em todo o mundo, teve alguma forma de relação com o tráfico de
escravos e com a escravidão porque essas eram práticas toleradas ou,
até, incentivadas, enquanto foram permitidas por lei. Por isso quando os
britânicos, franceses, holandeses e outros europeus do norte aboliram a
escravidão e libertaram os escravos, consideraram imprescindível
indemnizar os seus proprietários porque estes os haviam adquirido de boa
fé e escudados nas leis. Julgo que também não valerá a pena dizer aos
radicais do pensamento woke que era muito frequente que os senhores se
relacionassem sexualmente com as suas escravas favoritas (que por essa
via ascendiam socialmente e adquiriam, por vezes, a liberdade para si e
para os seus filhos) e que, de uma forma mais lata, esse tipo de
relacionamento com mulheres muito jovens não era censurado nem
considerado pedofilia. A idade legal do casamento era mais precoce do
que a que temos actualmente para, entre outras coisas, aproveitar
integralmente o período fértil das mulheres. D. Maria II, por exemplo,
casou aos 15 anos.
Mas
voltemos ao assunto: não posso dizer que estas duas notícias que nos
chegam do Reino Unido e dos Estados Unidos da América me tenham
surpreendido. São apenas mais dois episódios da caça às bruxas a que se
assiste no Ocidente, em particular nesses dois países. Todos temos tido
conhecimento de uma perseguição post mortem a figuras que de uma forma
ou de outra tenham tido uma relação, ainda que vaga ou indirecta, com a
escravatura, ou até que, não tendo tido essa relação, a refiram em
termos considerados politicamente incorrectos. São estátuas que se
derrubam, nomes de ruas e de praças que se alteram, quadros que se
retiram da vista pública, textos que se censuram e suprimem, etc.
Dirão
que isto são coisas passadas lá longe que pouco ou nada nos tocam. Mas é
uma doce ilusão porque as movimentações e decisões dos radicais woke
norte-americanos e britânicos vão ser imitadas pelos nossos woke locais.
Têm vindo, aliás, a sê-lo. Devemos estar, por isso, muito alerta e bem
preparados para combater estes exageros ultra-purificadores do passado.
Podemos fazê-lo de várias maneiras uma das quais é evitar a armadilha —
que constantemente nos armam — de entrar no método de julgar esse
passado com os valores e modos de pensar da cultura woke do presente.
De
facto, é importante perceber que este pensamento woke diverge
substancialmente daquilo que se entendia no século XIX, ou seja, na
própria época em que se ilegalizou e combateu o tráfico de escravos e a
escravidão. Este radicalismo tardio, deslocado, este julgamento
inclemente e obtuso de personagens já desaparecidas que tenham estado
envolvidas na escravatura, vai muito para lá do julgamento que os que
viveram esse tempo e que combateram pela libertação dos escravos
tiveram. Deixem-me dar-vos um exemplo português: em 1856 — há 165 anos,
portanto — Sá da Bandeira dizia que os antigos traficantes de escravos
deviam ser tolerados e apoiados, caso quisessem ter iniciativas honestas
e práticas honradas. Era essa a atitude de quem confrontou esses
traficantes e proibiu a sua actividade, a atitude de quem lutou no
terreno contra a escravatura. Seria Sá da Bandeira um homem infalível,
acima de qualquer crítica, sem defeitos e contradições? Longe disso, e o
mesmo se diga de Thomas Jefferson e de qualquer ser humano. Mas julgo
que todos perceberemos que Sá da Bandeira tinha as credenciais
necessárias para avaliar equilibradamente o assunto.
Hoje
em dia estes juízes e purificadores do passado são muito mais radicais e
intolerantes do que Sá da Bandeira foi e não suportam sequer a menção
ou figuração estatuária ou pictórica de um ocidental que tenha tido uma
ligação ao tráfico e à escravidão. Felizmente que o século XIX não foi o
século XXI, e que os activistas de então não foram os de agora. É que
os de então ajudaram efectivamente a pôr fim ao tráfico transatlântico
de escravos e à escravidão concreta de milhões de pessoas. Os de agora
limitam-se a apagar imagens, cortar textos, espalhar imposturas e a
baralhar as cabeças. É claro que toda essa actividade tem um objectivo
político. Aqui em Portugal ainda é semi-secreto, mas nos Estados Unidos é
assumido sem rodeios. Os defensores da cultura woke querem, no que à
escravatura diz respeito, uma nova narrativa e, sobretudo, dinheiro e
outras compensações que designam genericamente por “reparações”.
O
ataque às estátuas faz parte da tentativa de construir essa outra
narrativa, demolindo, de caminho, elementos importantes da narrativa
vigente. Muito significativamente o critério que o povo woke utiliza
para “avaliar” os ocidentais é completamente diferente do que aplica aos
africanos. Enquanto, nos Estados Unidos, se derrubam e removem estátuas
de Thomas Jefferson, Robert E. Lee, Abraham Lincoln e de outras figuras
da história norte-americana, celebra-se o ex-escravo Dessalines,
o líder haitiano que chacinou todos brancos que ainda residiam na
antiga colónia francesa e que aplicou um sistema de trabalho forçado aos
negros no qual se enforcava gente caso a produção agrícola baixasse.
Esse duplo critério da cultura woke também se verifica em Portugal onde
os que contestaram a estátua do Padre António Vieira em Lisboa (por ser,
alegadamente, “esclavagista”), manifestaram a sua anuência ou ficaram
em conivente silêncio quando, no Público, advogaram que se erigisse, na
mesmíssima Lisboa, uma estátua da rainha Njinga, a líder angolana cujo envolvimento no tráfico de escravos e na escravidão é por demais conhecido.
Como
é evidente não se trata aqui de uma esgrima de parada e resposta. A
rainha Njinga deve ser compreendida no seu contexto cultural e nas suas
circunstâncias históricas. Tal como Thomas Jefferson e António Vieira
também o devem ser. Condenações apressadas de qualquer destas figuras à
luz dos juízos morais da cultura woke são mera idiotia. Infelizmente é
por aí que vamos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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