BLOG ORLANDO TAMBOSI
Aquele prédio estava lá sem nenhuma história por detrás, e, por muito tempo, sem nenhuma funcionalidade. Agora que ele está lá, todo pimpão e restaurado, a internet baiana encheu-se de Sherlock Holmes preocupando-se com sua história. Bruna Frascolla via Gazeta do Povo:
Na
inauguração de um casarão todo azulejado em Salvador, ACM Neto declarou
que o DEM, ex-PFL, estava a caminho de se tornar também ex-DEM,
fundindo-se com o PSL. O Brasil atentou à declaração, sem nem saber do
casarão. Mas na Bahia o casarão atraía a atenção. Qual era a história
daquele prédio tão bonito?
Posso
começar explicando por que ACM Neto estava fazendo declarações. Após
décadas fechado, o casarão de quatro pavimentos ao pé do Elevador
Lacerda e ao lado do Mercado Modelo se tornara o Museu da Música. Antes
já se tinha falado em ele virar Hilton, mas não foi adiante. Falou-se
tanto em descaracterização (pois o projeto incluía umas gambiarras
modernistas) quanto em gentrificação (tem que deixar as coisas bonitas
para os cracudos).
Que
o casarão era bonito, todo mundo sabia. E lastimou-se muito quando o
teto ruiu e o interior veio abaixo, deixando só a casca azulejada. A
casca e as muitas janelas em ogiva.
Mas
o curioso é que o prédio sempre teve esse amor todo apenas por sua
beleza. Em Salvador, muitas coisas têm valor histórico. Aquele prédio
estava lá sem nenhuma história por detrás, e, por muito tempo, sem
nenhuma funcionalidade. Agora que ele está lá, todo pimpão e restaurado,
a internet baiana encheu-se de Sherlock Holmes preocupando-se com sua
história.
Prédio comercial do século XIX
O
povo não deixou de inventar uma história nobre para o prédio bonito. Eu
mesma cresci ouvindo que o prédio à Praça Cayru era do próprio Visconde
de Cayru, e que o Tratado de Abertura dos Portos teria sido assinado
bem ali. Eu não fui a única a conviver com essa história, então logo a
versão começou a circular na internet e o desmentido não tardou a
aparecer.
De
fato, o principal argumento para aquilo não ter sido moradia de Cayru é
que, pelo seu desenho, ele não fora moradia de ninguém: o casarão não
tem quintal. Onde os moradores iriam lavar a roupa e secá-la? A típica
casa lusitana tem quintal. Por outro lado, os edifícios comerciais
lusitanos tradicionais têm um térreo cheio de portas, como tem o casarão
azulejado. Era comum os comerciantes morarem em cima da loja, mas
aquele prédio imenso não parece ter sido feito para habitação. Assim,
sobra o caráter estritamente comercial.
E
o ponto em que fica o prédio se justifica perfeitamente. O edifício que
hoje é o Mercado Modelo já foi a Alfândega. O mar era muito mais
avançado. Aquela fachada que o turista vê da terra era, noutros tempos,
enxergada por quem vinha de barco. A embarcação era atracada ali e os
produtos eram inspecionados. Nessa época, o Mercado ficava no local onde
estava uma escultura abstrata de Mário Cravo que pegou fogo há poucos
anos. O prédio original do mercado também pegou fogo. Isso foi na gestão
de ACM, que encomendou a obra ao artista construir a obra. Eu não vou
dizer o nome pelo qual a escultura é conhecida, porque este é um jornal
de família. Seja como for, aquele pedaço foi de intenso comércio desde
os tempos coloniais até meados do século XX, quando transporte
rodoviário substituiu os demais. Antes as mercadorias chegavam a
Salvador pela água: saveiros vinham do interior da Bahia; do mundo
chegavam grandes embarcações.
Assim,
naquele prédio junto ao mar e rente à Alfândega havia uma porção de
escritórios comerciais. Foi construído em meados do século XIX.
Quando a beleza era trivial
Está
explicado, então, por que um prédio imponente foi construído sem
nenhuma memória específica: era uma construção banal para o contexto.
Tem a mesma função que os espigões de área central. Mas com duas
diferenças: é um retângulo deitado, não em pé; e é bonito. A primeira
diferença se explica por motivos estritamente materiais. Mesmo que fosse
possível construir um espigão, ele seria indesejável, antes da difusão
dos elevadores movidos a eletricidade. Por isso esse prédio de
escritórios do século XIX é um retângulo deitado em vez de em pé. Sem
ar-condicionado, aquelas dezenas de janelas não eram mera escolha
estética, embora fossem belas.
Mas
para a outra diferença, não há explicação material. Quem vai olhar
daqui a 200 anos para um prédio feito hoje e dizer: “Oh, que lindo
prédio! Espero que restaurem e botem qualquer coisa dentro. O que
importa é ele continuar de pé!”
Em
algum momento do século XX, a humanidade passou a achar um despautério a
ideia de fazer prédios que encantem pela beleza. Depois, inventou que
só o que importava era uma beleza exclusiva dos arquitetos e passou a
fazer coisas pomposas em que o povo bota apelido. Aí, se a mentalidade
de antes botava janelas por causa da ventilação e se empenhava em
fazê-las bonitas, a mentalidade de hoje faz qualquer trambolho num
formato inusitado, quando é trabalho para rico, ou um caixote
supostamente funcional, quando é pra não-rico. No primeiro caso, pode
deixar o prédio sem janelas porque janela é feio (caso do Congresso), ou
assar o pobre numa caixinha de concreto sem ventilação que o arquiteto
viu numa revista de país frio.
O prédio-problema
Não
muito depois de o prédio belo aparecer nos jornais, um outro, também em
Salvador, ganhou uma reportagem. Trata-se de um arrojado projeto
arquitetônico feito por um professor titular da USP. Eis o título e o
subtítulo: “O segundo sol chegou: novo hospital de Salvador ‘cega’ e
incomoda vizinhos. Hospital Mater Dei é criticado até por especialistas
de trânsito: ‘É importante que a Transalvador faça uma intervenção’ ”.
Trata-se de um cilindro gigante e espelhado com apenas alguns andares de
janelas coloridas e não-espelhados. Pensem num dedo com um anel
colorido e grosso enfiado: o dedo é de espelho e aponta para o céu da
primavera de Salvador.
À
medida que a obra foi avançando, uma vizinha passou a ter no seu
apartamento o sol da nascente, real, e o sol do poente, reflexo do
espigão.
Quem
precisa de espelho do lado de fora do prédio? Ninguém. Quem acha uma
boa ideia botar um espelhão gigante no meio da cidade? Arquiteto. Só
arquiteto.
E
o problema é global. Segundo informa a matéria, a moda dos espelhões em
Nova Iorque foi detida por uma lei ambiental de proteção dos pássaros,
que se esborracham e morrem. É sem dúvida uma preocupação legítima. Mas é
interessante como precisa botar um animalzinho no meio para parar com
uma coisa estúpida dessas; os incômodos causados ao homem não movem
alteração nenhuma nas leis. Por causa dos passarinhos – e não dos
acidentes de trânsito, e não da moradora com dois sóis no apartamento – é
preciso que o poder público faça alguma coisa para deter a insensatez
dos arquitetos.
A
moda dos prédios espelhados já chegou a derreter parte de um Jaguar em
Londres e, ainda assim, há uma coleção de prédios-problema no mundo
rico. E, como diria Millôr Fernandes, quando uma ideia fica bem
velhinha, ela vem para o Brasil. Para os nossos arquitetos, importa
copiar; não importa pensar.
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