Talvez o que precisemos de fato aprender é que a governabilidade só pode ser construída com a aplicação da lei e fazendo a coisa certa. O oposto disso é um beco sem saída. Coluna de Sergio Moro para a revista Crusoé:
Governabilidade
é um conceito equivocado. Pode ser compreendido na perspectiva do
objeto a ser governado ou na do sujeito que governa. No primeiro
sentido, por exemplo, um país pode ser fácil ou dificilmente governado
ou até ser avaliado como ingovernável, independentemente de quem ocupa a
posição de líder. A ingovernabilidade era o que se dizia, por exemplo,
em relação à República de Weimar, do entreguerras: pela excessiva
fragmentação partidária não haveria condições de governabilidade naquele
sistema político independentemente de quem exercia a liderança. A
solução para a governabilidade envolveria não a troca da liderança, mas a
mudança da forma de governo. A República de Weimar caiu com a ascensão
ao poder de Você Sabe Quem, mas não foi mera troca de liderança e sim
substituição de uma democracia pelo totalitarismo. Ironicamente, estavam
os alemães melhores com a ingovernabilidade do que com a
governabilidade de um tirano genocida. Já no segundo sentido, a
governabilidade é avaliada na perspectiva de quem governa. A liderança
pode governar com facilidade, para o mal ou para o bem, ou ter perdido
as condições para exercer o poder. Governabilidade pela liderança não
depende necessariamente de que o governo seja bom, haja vista o exemplo
de estados falidos, nos quais os governantes ainda assim se mantêm no
poder.
A
sucessão de governos ruins e de impeachments presidenciais gerou
recente discussão no Brasil acerca da governabilidade. A culpa seria dos
presidentes ou da forma de governo mal desenhada? No primeiro caso,
bastaria ter a paciência de aguardar as próximas eleições ou precipitar a
mudança por impeachment. No segundo, as eleições não alterariam o
problema, sendo necessária uma reforma mais ampla. Seria o
parlamentarismo ou alguma espécie de semipresidencialismo a solução? Há
dúvidas.
É
certo que o nosso presidencialismo de coalizão, que é o formato adotado
desde a redemocratização, apresenta sinais de esgotamento. Pela
dificuldade da Presidência de obter uma maioria no Congresso para
aprovar os seus projetos, impasses políticos têm sido frequentes, e na
disputa entre Executivo e Legislativo, o segundo tem condições de
demitir o presidente, mas este não tem como destituir os parlamentares. A
tensão máxima tem resultado em ameaças de impeachment frequentes e, em
dois casos, a sua efetivação.
Para
obtenção da maioria parlamentar, ainda que temporária, o Executivo tem
lançado mão progressivamente de expedientes de ética questionáveis e que
reforçam o caráter patrimonialista e extrativista de nossas práticas
políticas. A disponibilização de recursos aos parlamentares via emenda
de orçamento ou a colocação de áreas da administração pública à
disposição de loteamento político partidário são dois exemplos
negativos. Mas há situações piores. Um exemplo delas foi revelado no
escândalo do Mensalão, em que o Supremo Tribunal Federal, liderado pelo
ministro Joaquim Barbosa, reconheceu a “comprovação do amplo esquema de
distribuição de dinheiro a parlamentares, os quais, em troca, ofereceram
seu apoio e o de seus correligionários aos projetos de interesse do
governo federal na Câmara dos Deputados”. Mas o estado da arte da
putrefação foi escancarado pela Operação Lava Jato, com todos os
detalhes e provas: os cargos nas estatais brasileiras eram loteados
politicamente e os nomeados tinham por missão arrecadar recursos para
enriquecimento ilícito de agentes e partidos políticos em troca da
governabilidade.
Muitos
agentes políticos alegam que a governabilidade demanda ceder ao
fisiologismo, ao patrimonialismo, ao loteamento político de cargos e, em
algum ponto, até mesmo à corrupção clara e aberta. No fundo, sempre li
isso ao contrário, o fisiologismo, o patrimonialismo e o loteamento
político eram desejados e precisavam encontrar uma justificação que os
legitimassem de alguma forma. Da mesma forma, sempre é preciso encontrar
uma razão, ainda que ilegítima, para a corrupção. Foi exatamente o que
ocorreu no Mensalão e nos casos revelados pela Operação Lava Jato.
Apesar da corrupção escancarada, parte dos responsáveis pelos crimes
justificava suas condutas ilegais e antiéticas com o o falso álibi da
“governabilidade”. É uma técnica de neutralização da culpa, “fiz para
manter a governabilidade”, assim como o célebre álibi “fiz porque todos
fazem”. Mas quando se olha de perto ou em detalhes, essas frases não
raramente parecem com “fiz porque era cúmplice”, “fiz porque não me
importo” ou “fiz para manter meu poder ou ampliá-lo”.
A
governabilidade é, por evidente, imprescindível para a estabilidade
política e para que governos possam alcançar os seus objetivos. Mas não
se pode ceder à corrupção para construir ou manter a governabilidade.
Não é uma questão puramente moral ou legal. Quando se cede ao crime,
constrói-se governabilidade efêmera. Os custos para mantê-la vão se
tornando cada vez mais altos, pois o apetite da corrupção é insaciável.
Além disso, premia-se os maus, e se desenha a tendência de que a
política passe a ser cada vez mais dominada por criminosos e não por
princípios. Quando ainda ouço atualmente que não se governa sem se ceder
à corrupção, tenho certeza de que, além da justificação hipócrita,
vende-se, na prática, a governabilidade do futuro e na verdade o próprio
futuro. Não é sobre essas bases que se pode construir uma agenda
política moderna e voltada ao bem comum. Não conheço a história de
qualquer país cuja estratégia bem-sucedida de desenvolvimento tenha
passado pela aceitação da corrupção como um mal necessário.
A
lei e a Justiça precisam servir como um contraponto a essas tentações
ilícitas. Não cabe às instituições da Justiça realizar cálculos
políticos ou ceder a apelos para manter a duvidosa e momentânea
governabilidade. Se alguém cometeu um crime, mesmo se poderoso e se
envolver grande corrupção, deve haver punição, observado o devido
processo legal. Ceder ao cálculo político é esvaziar a credibilidade da
lei e da Justiça. Nem o apelo à governabilidade é válido, pois no médio e
longo prazo ela é a maior vítima. O julgamento do Mensalão e dos casos
revelados pela Lava Jato mostrou que as instituições da Justiça podem
funcionar e aplicar a lei, algo simples, mas revolucionário em um
cenário histórico de impunidade da grande corrupção. Não é destino
manifesto do Brasil ou de qualquer país ser uma nação corrupta.
Sou
um pouco cético em relação à ideia de que a mudança da forma de governo
resolveria os nossos problemas de governabilidade. Reforçar o poder do
Congresso, com a fragmentação partidária atual, nos aproximaria da
instabilidade política da República de Weimar ou mesmo da República
Francesa no período do entreguerras, nenhuma delas com final feliz. Além
disso, não deixa de chamar a atenção o histórico recente de presidentes
da Câmara e, em menor medida, do Senado que foram acusados ou
condenados criminalmente. Talvez o que precisemos de fato aprender é que
a governabilidade só pode ser construída com a aplicação da lei e
fazendo a coisa certa. O oposto disso é um beco sem saída.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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