MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

terça-feira, 24 de agosto de 2021

Que saudade daquele bar horrível

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI


Sou obrigado a reconhecer, contudo, que nossa relação afetiva com os bares ruins é mais ou menos igual à relação afetiva com o país: é uma porcaria, mas é a NOSSA porcaria. Ruy Goiaba para a Crusoé:

Como paulistano da Vila Madalena — geralmente assintomático —, sempre achei que um dos traços distintivos dos meus queridos amigos cariocas era lamentar o fechamento de bares horríveis, coisa que em geral acontece uns 20 anos depois de a vigilância sanitária não ter tomado as providências cabíveis. O lugar X é uma pocilga (literalmente, no caso dos banheiros), comida e bebida são ruins e caras, os garçons te atendem mal (isso na hipótese de perceberem a sua presença), o próprio lugar está meio às moscas há anos graças a todas essas qualidades e, de bônus, ainda tem um frequentador no papel de voyeur dos clientes que vão ao mictório — mas basta anunciarem o fechamento para os cariocas virem com “oooh, meu Deus, que tristeza, é o FIM DE UMA ERA”.

De fato, às vezes interdição da vigilância sanitária é pouco: havia um lugar no Leblon que servia aos clientes a coisa mais hedionda e incomível já chamada de “pizza” em todos os tempos. Se os italianos não fossem um povo muito tolerante, teriam rompido relações ou, no mínimo, chamado seu embaixador no Brasil “para consultas”. Quando anunciaram o fechamento, vieram com o mesmo papo de “fim de uma era”, acrescentando que se tratava de um “reduto da boemia carioca nos anos 80” — o que só comprova que essa tal boemia carioca dos anos 80 estava entupida demais de pó para ter alguma noção de qualquer coisa.

O fato é que paguei a minha má língua paulistana: bastou anunciarem o suposto fechamento da Mercearia São Pedro, na supracitada Vila Madalena, para que minhas timelines nas redes virassem um muro das lamentações de posts sentimentais e poesia ruim sobre o lugar. Escrevi “suposto” porque há controvérsias: um dos sócios disse que vai fechar, mas o irmão dele, também sócio, negou. Diga-se, aliás, que nunca achei a Mercearia ruim: só superestimada, graças à turma de escritores (invariavelmente autocongratulatórios, geralmente medíocres) que transformou o lugar em point e permitiu aos seus donos vender por 15 reais cerveja meia-boca que você encontra em qualquer mercado por 6.

(A história não confirmada é que o bar e outros cinco sobrados vizinhos seriam demolidos para a construção de um prédio de luxo no bairro, o que me parece bastante lamentável: mas juro a vocês que, de tanto ler comentários na linha “é a força da grana que ergue e destrói coisas belas”, fiquei com ganas de pegar eu mesmo uma picareta, derrubar tudo — com os clientes dentro — e jogar sal nas ruínas, torcendo para que construam no lugar o arranha-céu de estilo dubaiano mais cafona e ostentatório possível. Felizmente, passa rápido. Fecha parêntese.)

Sou obrigado a reconhecer, contudo, que nossa relação afetiva com os bares ruins é mais ou menos igual à relação afetiva com o país: é uma porcaria, mas é a NOSSA porcaria — o cenário de muitos acontecimentos importantes nas nossas vidas lamentáveis. Antonio Candido escreveu que a literatura brasileira era “um galho de segunda ordem no jardim das musas”, mas acrescentou: “é ela, não outra, que nos exprime”. O que nos exprime, e muitas vezes nos espreme, não é o Harry’s Bar lá de Veneza: é a cerveja superfaturada no bar lotado da Vila Madalena, é a chanchada (com ou sem pornô), é aquele “quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha” do Bandido da Luz Vermelha no filme.

O Brasil é um pesadelo do qual estamos tentando acordar: nessas condições, qualquer bar é uma boia atirada ao náufrago. Só peço gentilmente que não escrevam na minha boia “você praça acho graça, você prédio acho tédio”: se eu me afogar, vocês hão de carregar essa culpa para o resto das suas vidas.

A GOIABICE DA SEMANA

Pensei em dar o troféu desta semana para os especialistas em Afeganistão que brotaram de repente nas redes sociais, principalmente aqueles que estão acreditando na conversa do “Talibã moderado”, Talibã paz e amor, Talibã com Carta ao Povo Afegão, Talibã fiscalmente responsável com câmbio flutuante e metas de inflação. Mas não teve jeito: o campeão foi, de novo, o glorioso Exército brasileiro e suas manobras ao som do tema de “Missão Impossível” para derrubar a casinha do Snoopy. Eu achava que seria difícil superar o ridículo daquele desfile de latas velhas, mas fico feliz em constatar que as Forças Armadas se empenham em bater os próprios recordes do modo mais criativo.

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