Ensaio do professor José Eduardo Faria para o Estado da Arte:
O
presidente Jair Bolsonaro voltou a invocar o artigo 142 da
Constituição, que trata da defesa do Estado e das instituições
democráticas, afirmando que ele confere aos militares um “poder
moderador” para repor a lei e a ordem quando houver conflito entre os
Poderes. “Nas mãos das Forças Armadas, a certeza da nossa liberdade e do
apoio total às decisões do presidente para o bem da sua nação. Obrigado
por existirem. Nós sabemos o que é bom e o que é justo para o nosso
povo”, disse ele no dia 12 de agosto, numa solenidade de promoção de
generais.
Bolsonaro
defendeu reiteradamente essa tese no ano passado, principalmente depois
de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que considerou
inconstitucional um de seus atos normativos. Na ocasião, o presidente da
corte, Luiz Fux, o rebateu de pronto, esclarecendo que a leitura do
artigo 142 feita pelo presidente da República é equivocada, em termos
técnico-jurídicos. Por causa disso, Bolsonaro ampliou suas afrontas à
corte, estimulando seus seguidores a fazerem o mesmo.
Agindo
nessa linha, um grupo de 52 membros da Aeronáutica, 16 da Marinha e 10
do Exército – todos da reserva – publicou um manifesto acusando os
ministros do STF de fazerem “uso de um palavreado enfadonho, supérfluo,
verboso, ardiloso, como um bolodório de doutor de faculdade”. E um
deputado, Marcio Labre (PSL-RJ), chegou a afirmar pelo YouTube que, “se
as Forças Armadas decidirem que os senhores (ministros do STF) estão
destituídos, os senhores estarão, porque o fuzil atira e a caneta não
atira. A vida funciona assim, sempre funcionou. Quem manda no jogo é o
dono do fuzil, não é a caneta do senhor Fux, nem do senhor Toffoli, nem
do senhor Lewandowski, nem do senhor Gilmar Mendes. Um único movimento
de tanque na sala dos senhores e os senhores saem algemados,
destituídos, podem perder num instante o status que têm hoje”.
Deixando
de lado a adulação de Bolsonaro aos novos generais, o palavrório dos
oficiais de pijama e o golpismo desse parlamentar, a ideia de que o
artigo 142 permite às Forças Armadas agirem como poder moderador de
conflitos entre os poderes não procede, juridicamente. Segundo esse
artigo, “as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e
pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares,
organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade
suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à
garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer
destes, da lei e da ordem”.
Apesar
de não ser um texto preciso, como tantos outros produzidos pela
Constituinte, o artigo 142 não diz, em momento algum, que as Forças
Armadas têm a prerrogativa de um juízo singular que lhes permita avaliar
eventuais tensões e conflitos entre os três Poderes e de intervir por
conta própria, sob a justificativa de garantir a Constituição e
preservar a lei e a ordem. Também não afirma que as Forças Armadas são a
garantia da Constituição — esta, pelo artigo 103, deixa claro que o
guardião da Carta é o STF.
Na
verdade, o poder de chefia das Forças Armadas é limitado juridicamente e
não há qualquer margem para interpretações que permitam sua utilização
para conter “indevidas intromissões” no funcionamento dos outros
Poderes, como afirmou o presidente da República em 2020. Ao contrário do
que tenta induzir, o artigo 142 é o que define as funções das Forças
Armadas — não são elas que definem o papel da Constituição. Por mais que
esse artigo 142 estabeleça que o papel institucional dos militares é
defender a Pátria, garantir os poderes constitucionais e assegurar a lei
e a ordem, ele não acolhe a ideia de um poder moderador entre os
poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
O
que aqueles que criticam os ministros do STF de se expressar por meio
de “bolodórios de um doutor de faculdade” não sabem é que, no âmbito do
direito positivo, não existe uma interpretação literal da Constituição e
das leis – como se houvesse uma interpretação única e verdadeira.
Qualquer calouro dos cursos jurídicos aprende, já no primeiro ano, que a
interpretação literal é rejeitada desde os tempos do pensamento
helênico. Entre os parlamentares bolsonaristas, como aquele que pede “um
único movimento de tanque na sala dos ministros do STF”, certamente
também haverá quem defenda uma técnica interpretativa dirigida à
revelação da vontade do legislador, vinculada a critérios metodológicos
consagrados pela jurisprudência e pela doutrina. E, entre os que
conhecem um pouquinho de direito e fornecem pareceres de ocasião a
generais, almirantes e brigadeiros, alguns poderão até falar em
interpretações gramatical, lógica e sistemática.
Embora
essas concepções hermenêuticas sejam antigas, elas já não mais se
adequam às sociedades complexas. Nelas, os juízes já não são vistos como
agentes presos a um sistema lógico-formal de regras, mas encarados como
profissionais cujas decisões resultam da ponderação entre suas visões
jurídicas, morais e políticas e os aspectos factuais dos casos sob sua
responsabilidade. Nessas sociedades, o sentido de uma norma jurídica não
é algo objetivo que se encontra no texto da lei. É, isto sim, o
resultado de um processo de leitura dessa norma condicionado pela
experiência pessoal, profissional e cultural do intérprete.
Desse
modo, quando o STF examina um texto legal, não há sentido único a ser
extraído dele – o que há são sentidos contextualizados pelas
circunstâncias que balizam a escrita e a comunicação dos legisladores e
juízes. Se as normas não são linguisticamente unívocas, ao julgarem
ações de inconstitucionalidade contra o uso abusivo de MPs e outras
iniciativas do governo, os ministros do STF elegem, entre vários
sentidos possíveis, o que melhor pode realizar a função estabilizadora
do direito. Os ministros levam em conta os marcos normativos da
Constituição como moldura solene, o que neutralizaria o arbítrio.
Nessa
perspectiva, a linguagem das leis não é apenas um instrumento para
descrever a realidade por elas regulada — ela também é edificadora da
própria realidade. E, à medida que essa realidade vai se tornando mais
intrincada, para regular os casos difíceis o legislador tende a optar
por conceitos principiológicos — ou seja, abertos e indeterminados.
Conceitos como moralidade pública, defesa da pátria e da Bandeira e
garantia dos poderes constitucionais nada mais são do que técnicas de
catalização de expectativas dos diferentes setores da sociedade.
Conceitos
como esses são, também, fatores de estabilização da ordem legal e
preservação de sua identidade sistêmica. São, ainda, instrumentos usados
pelo legislador para assegurar alto grau de respeitabilidade dessa
ordem junto à população. E, como não são autoexecutáveis, os conceitos
abertos pressupõem a transferência da responsabilidade por seu
fechamento e implementação aos tribunais. Por isso, quando recorrem a
princípios como esses para fundamentar uma decisão, os juízes — da
primeira à última instância — legislam no caso concreto.
O
caráter polissêmico desses conceitos é um fator revelador de que não há
interpretação mecânica ou neutra das leis — fato esse que os acusadores
do STF e de seu decano parecem não compreender. Se por um lado a
interpretação das normas é condicionada pela experiência pessoal e
intelectual do intérprete, por outro, quanto mais principiológico é um
texto legal, maior é a discricionariedade dos juízes. Mesmo que as
decisões estejam escritas na linguagem da lógica jurídica, elas encerram
juízos de valor que podem conflitar entre si. Como dizia o justice
Oliver Wendell Holmes Jr., antigo presidente da Suprema Corte americana e
docente de Harvard, processos são “campos de batalha” nos quais a
sentença é preferência de um determinado juiz de um determinado lugar
num determinado momento histórico.
No
limite, textos legais com conceitos mais abertos – como defesa da
Pátria e da Bandeira e garantia dos Poderes constitucionais — encerram
dois riscos. Por um lado, o excesso de princípios pode inviabilizar o
direito positivo como técnica. Por outro, confere aos responsáveis por
sua aplicação um amplo poder político e institucional. Decorre daí a
porosidade da fronteira entre a criação do direito, de competência do
legislador, e sua aplicação, de competência do juiz. Também decorre daí a
crescente judicialização da vida política e a subsequente politização
da Justiça. Decorrem daí, ainda, a jurisprudência criativa dos
tribunais, a multiplicação de decisões com fundamentos extrajurídicos e o
intervencionismo em políticas públicas.
Com
seus rompantes, confundindo “autoridade suprema” com poder absoluto,
como é o caso de Bolsonaro e seu entorno militar e político, os
bolsonaristas críticos do STF — a começar pelo próprio presidente —
agiriam melhor se ficassem calados, pois assim não revelariam o grau de
sua ignorância jurídica. Como abriram a boca, mostraram não ter
competência para discutir problemas atuais mais importantes em matéria
de aplicação e de interpretação do direito.
Como
mudar um cenário em que as decisões judiciais tendem a ser mais uma
criação dos juízes do que o resultado da aplicação dedutiva de normas
jurídicas? Há limites à recriação da ordem legal por meio de
interpretações judiciais? É possível evitar que o controle da
constitucionalidade das leis se converta numa atividade inovadora de
sentido, mesmo sob a justificativa de atualizar um pacto constitucional
que, por princípio, é fruto de um processo de decisão coletiva destinado
a garantir ao máximo sua universalidade e consenso? Se muitos textos
legais contemporâneos são amoldáveis para a atribuição de qualquer
sentido por um juiz, como fica a segurança do direito?
Em
suma, ao redigir o artigo 142, os constituintes talvez tenham cedido
demais, no plano simbólico, para as Forças Armadas. E o fato é que
agora, 33 anos depois, uma parte dela — ignara, anacrônica e de vocação
autocrática — parece almejar mais do que a tutela simbólica. Ou seja: o
poder efetivo. Nesse sentido, ao insistir que esse artigo confere às
Forças Armadas um poder moderador, perante um grupo de generais, dois
dias após o patético desfile de tanques sucateados pela esplanada dos
ministérios, em Brasília, Bolsonaro nada mais faz do que amplificar o
desapreço pelas liberdades públicas.
Com
isso, negou a Constituição que jurou cumprir. E agora, ao acusar os
ministros do STF de “extrapolarem de suas prerrogativas”, quando na
prática eles estão apenas exigindo respeito à ordem constitucional,
ainda deu mais um triste passo, cujas consequências são imprevisíveis,
que tende a tornar o País menor perante o mundo civilizado e as nações
com democracia consolidada.

José
Eduardo Faria é Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria
Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
(USP).
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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